Descrição de chapéu Artes Cênicas

Peça que abre MITsp faz do palco um estádio e debate o futebol e todo o seu universo

Mudando a cada nova encenação, 'Estádio' emenda depoimentos de membros de diferentes torcidas organizadas

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Rio de Janeiro

Dois refletores se acendem, iluminando o campo vazio. Na arquibancada, uma dupla de torcedores estende uma faixa em que se lê "procura-se desesperadamente público". São os primeiros movimentos de um jogo sem bola. Em dois atos de 45 minutos, a peça "Estádio", do diretor francês de origem marroquina Mohamed El Khatib, transporta o ambiente de um estádio de futebol para as salas de teatro.

A peça, que estreia nesta quinta-feira e é um dos destaques da oitava MITsp, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, foi concebida há cinco anos, a partir de uma frase do filósofo francês Gilles Deleuze. "O que diferencia uma plateia de teatro de uma torcida de futebol? Com exceção dos uniformes dos jogadores, claro?", ele perguntava. Ao questionamento, se somou um desejo de reconciliação entre o diretor de 42 anos e sua história familiar.

O francês Mohamed El Khatib, de 42 anos, diretor de 'Estádio', que integra a programação da MITsp, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, de 2022 - Divulgação

Depois da morte de seu pai, El Khatib decidiu escrever uma obra em sua homenagem. Pensou, então, que antes de ser um operário, seu pai era um torcedor de futebol.

Transmitida entre gerações, a paixão pelo esporte permanece na mente do autor de maneira peculiar. El Khatib não tem um time do coração. A cada temporada, ele torce para a equipe que apresenta o desempenho mais vistoso, como se fosse um esteta da bola.

"O futebol constitui uma linguagem própria de um espetáculo, com atores que fazem gestos relacionados ao belo e à graça", ele afirma. "Se há críticos de arte, há também a figura do comentarista de futebol. A diferença é que uma obra de arte é finita. Já o futebol é jogado a cada vez, tem sempre uma incerteza."

Para apreender o que chama de dramaturgia do futebol, o diretor, formado em ciências políticas, fez uma imersão na região de Pas-de-Calais, no norte da França, onde acompanhou o trabalho das torcidas organizadas do Racing Club de Lens durante a temporada de 2015 e 2016. A escolha da equipe se deu sobretudo pelo retrospecto medíocre nos principais torneios do país. Para se ter ideia, a sétima posição no Campeonato Francês, que terminou há duas semanas, foi bastante comemorada pela torcida.

El Khatib garante, porém, que o Lens tem uma história mítica. Nos arredores do estádio Félix-Bollaert, ele se deparou com uma expressão cultural popular, vinda de uma das regiões mais pobres da França, onde o futebol representa o único momento de lazer do operariado.

O diretor reuniu no palco então 53 torcedores, fazendo de "Estádio" uma obra que se sustenta pelo happening e a linguagem documental. Um telão reproduz depoimentos dos personagens selecionados, que de repente aparecem em cena, para contar suas experiências.

"Na peça, não existe um texto, faço um trabalho de performance com essas pessoas. Elas muitas vezes não aparecem, é bom que elas tenham liberdade", descreve o diretor, que trabalha com atores amadores desde 2014 —então, ele pôs em cena uma faxineira que narrava sua própria história.

Se cada partida é um novo mistério, a peça também sempre muda, tanto que El Khatib nem sabe como será a apresentação no festival paulistano. Recém-chegado a São Paulo, ele vai se encontrar com 18 torcedores, sem focar um clube específico, a fim de traçar um panorama das diferentes torcidas organizadas.

O objetivo, contudo, segue o mesmo da montagem original. Reunindo várias anedotas dos entrevistados, o diretor costura testemunhos de figuras marginais do mundo futebolístico. "O estádio é um laboratório social", atesta. "Nele, está contida toda a arquitetura de um povo, com uma mistura de classes rara de se encontrar em outros lugares."

Na montagem original, uma "cheerleader" do Félix-Bollaert reflete sobre sua atividade. Os movimentos repetitivos a fizeram se amar mais, perder a timidez e abraçar o feminismo.

O árbitro que apitou o jogo decisivo do único título conquistado pelo Lens no Campeonato Francês, na temporada de 1997 e 1998, também foi convocado por El Khatib. No dia anterior à rodada, sua mãe havia morrido.

O fato seria divulgado no estádio, que, por um dia, preferiu não xingar o juiz de filho daquela —mas de órfão dela mesma. Trocando confidências com a plateia, ele conta seu sonho mais íntimo. Expulsar todos os jogadores, um por um, e depois cada torcedor, até que o estádio fique vazio.

Como resultado, o conjunto de anedotas faz com que a plateia se sinta autorizada a se comportar como se estivesse num estádio. Entre fanfarras e cantorias, alguns espectadores sobem ao palco para beber cerveja e até para fazer uma boquinha. "Deixamos de lado os códigos do teatro tradicional. Eu gostaria muito que numa peça clássica as pessoas se comportassem assim."

Estádio

  • Quando Quinta (2), às 20h; sexta (3) e sábado (4), às 21h
  • Onde Sesc Pinheiros - R. Paes Leme, 195, Pinheiros, São Paulo
  • Preço R$ 40
  • Classificação 10 anos
  • Autor Mohamed El Khatib
  • Elenco Afonso Costa, Bárbara Lins, Carol Cax, Clarissa Ferreira Monteiro, Danilo Arrabal, Fellipe Sótnas, Gabriel Góes, Gabriel Pangonis, Izaa Robert da Silva Pinheiro, Joy Catharina, Julia Pedreira Monteiro, Lipe Lima, Luana Melo Franco Boamond Rodrigues, Lucas Reitano, Moni Bardot, Paulo Gircys, Pedro Massuela
  • Direção Mohamed El Khatib e Fred Hocké
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