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Em 'Todo o Tempo que Existe', Adriana Lisboa ensaia viver com o luto

Livro mostra como processo amplia a consciência da vida à medida que queremos contar a nossa história com que se foi

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Fernanda Silva e Sousa

Todo o Tempo que Existe

  • Preço R$ 49,90 (136 págs.)
  • Autor Adriana Lisboa
  • Editora Relicário

"E que bobagem isso de literatura", escreve Adriana Lisboa, ao lembrar das últimas palavras que sussurrou no ouvido do pai no leito de um hospital. Diante de uma perda iminente e inevitável, diz ela que é preciso voltar "às palavras simples, às palavras de dentro, às palavras cicatrizes", quando é possível entender por que as declarações de amor mais clichês perduram: elas parecem ser tudo que temos quando nos sentimos incomunicáveis.

Entretanto, é à literatura que a escritora carioca retorna dois meses depois da morte do pai, ocorrida em 2021, e sete anos depois da passagem da mãe, em 2014, para escrever "Todo o Tempo que Existe" em meio à pandemia de Covid-19 –da qual seu pai foi uma das vítimas. Premiada romancista e poeta, Lisboa escolhe escrever um ensaio autobiográfico como quem precisa, como todo enlutado, ensaiar novas formas de viver não depois da perda, mas com a perda.

adriana lisboa
A escritora Adriana Lisboa, que lança 'Todo o Tempo que Existe' - Julie Harris

Nesse sentido, o livro evidencia como o luto é um processo que amplia nossa consciência a respeito da dimensão narrativa da vida, na medida em que queremos contar não simplesmente a história dos que se foram, "mas a nossa história com eles e depois deles. A história deles em nós". No entanto, esse anseio é atravessado pela aceitação da autora de que não há linguagem possível para a dor de uma "perda-pedra".

Não à toa, Lisboa, em meio às lembranças dos pais, que ficaram 50 anos juntos, mobiliza referências artísticas e teóricas que compõem uma espécie de coro que nos lembra que o luto é também uma experiência coletiva, embora com pouco espaço no "grande falatório do mundo". O "tempo outro do jardim", por sua vez, como as árvores e flores do Jardim Botânico, onde passeia, irrompem em seu texto afirmando a força da vida que se renova.

Talvez tenha sido a exuberância da natureza, que insiste em viver mesmo em meio à destruição, contrastando com a tristeza inconsolável da perda, que levou a autora a pensar que falar da morte é falar da vida e do amor. É assim que Lisboa, mais do que escrever sobre o adoecimento ou a morte dos pais, constrói um multifacetado inventário do que foi vivido, pois amar é "ser capaz de lembrar das coisas menos nobres, menos bonitas, menos sãs, e saber: amor ainda assim".

Assim, conhecemos os pais da autora, seu Arnaldo e dona Gilda, não por meio de grandes feitos, mas de seus gestos ordinários e profundamente humanos de habitar o mundo e de cuidar dos filhos. O dedo verde de uma mãe apaixonada por jardinagem, as serestas repentinas organizadas por um pai: estes são exemplos dos tantos bens imateriais que aqueles que se foram nos deixam e que podemos inventariar com a literatura.

Esse pequeno inventário do amor não é feito, porém, sem a consciência de Lisboa de que precisa se refazer sozinha em um mundo que se torna cada vez mais desconhecido ao não ter mais os seus alicerces. Por isso, ao aceitar o caráter irreparável da perda e a "soberaníssima" morte, as cicatrizes podem se tornar o "lugar por onde a luz penetra em nós", o mapa em que dor e amor se encontram como parte da travessia do luto.

Em sua estreia no gênero ensaio, Adriana Lisboa, de forma franca e corajosa, nos convida a redimensionar o olhar para a perda de quem se ama, fazendo desta uma forma de investigação da vida que há por trás dela, em que o tempo do luto é também o tempo do amor. Com nossas "cicatrizes luminosas", aprendemos, então, a "deixar que a morte exista na vida", criando nossas narrativas para os mortos, esses "vagalumes que recusam a extinção" e podem brilhar em nós em todo o tempo que existe.

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