Descrição de chapéu
Livros África

'O Tumor' cria deserto distópico que pode servir de metáfora das eleições

Livro do escritor líbio Ibrahim al-Koni trata da natureza do poder e é porta de entrada para a ficção de autor ainda inédito no país

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O Tumor

  • Preço R$ 61 (192 págs.)
  • Autoria Ibrahim al-Koni
  • Editora Tabla
  • Tradução Mamede Jarouche

Assanai está tão cansado que se esquece de desvestir a túnica quando se deita no tapete. Assim que acorda, o lugar-tenente do oásis descobre que a prenda grudou nele, fundindo pelo com pele.

O romance "O Tumor", do escritor líbio Ibrahim al-Koni, já começa jogando areia nos olhos do leitor, dando sustos. É uma narrativa distópica que se passa num deserto fictício e fantástico, mas que poderia acontecer também em Washington ou em Brasília. O livro trata da natureza do poder.

Lançado em 2008, o texto chega ao Brasil pela Tabla com tradução de Mamede Jarouche, professor da Universidade de São Paulo conhecido por verter o "Livro das Mil e Uma Noites". Koni, de 74 anos, é um dos principais autores vivos de língua árabe. Até agora, um nome ausente nas prateleiras brasileiras.

O autor líbio Ibrahim Al-Koni
O autor líbio Ibrahim Al-Koni - Divulgação

Em "O Tumor", Koni conta que Assanai um dia recebeu um presente de um misterioso mensageiro –uma túnica. A vestimenta foi enviada por um líder supremo que ninguém jamais viu. Talvez um deus. Pela tradição, quem veste a túnica feita de peles ganha o direito de comandar o oásis no meio do deserto. Como explica o narrador, é um amuleto que transforma um venerador em venerado.

O leitor vai entendendo, ao avançar as páginas, por que a túnica se grudou no corpo de Assanai. "Quem ama algo mais do que se deve torna-se parte dele", Koni explica no romance. A mensagem é clara –Assanai se agarrou demais ao poder, que por sua vez se agarrou à pele dele.

Mas vão surgindo as questões típicas da ciência política. Quem é esse líder que ninguém conhece? Por que ele distribui seu poder? O que faz respeitarem alguém por vestir uma túnica?

Capa do livro 'O Tumor'
Capa do livro 'O Tumor' - Marcelo Pereira/Tecnopop/Divulgação


O livro tem aquela qualidade rara que transforma um contexto particular numa mensagem universal. Quem espera que, por ser líbio, Koni escreva sobre Muammar al-Gaddafi, ex-ditador daquele país, vai se perder nas dunas e se esfarelar. Koni trata de coisas absolutas que o leitor brasileiro pode identificar na campanha eleitoral deste ano, sem ter de olhar para o mapa-múndi.

Mesmo que a história de "O Tumor" possa ter acontecido em qualquer lugar, não é por acaso que o deserto está no centro da alegoria. É o espaço narrativo predileto de Koni, que cresceu na Líbia, imerso na cultura tuaregue —um povo berbere, seminômade, conhecido porque seus homens cobrem o rosto com véus em geral azuis. É um lugar, como escreve em "O Tumor", cujo silêncio suspeito traduz todas as coisas ao nada —e traduz todas as expressões em metáforas.

Da mesma forma que o leitor não vai encontrar Gaddafi, tampouco vai achar referências ao islã, a fé associada à região. Koni escreve sobre um passado distante, amorfo, costurado com os retalhos de diversas tradições culturais.

O livro abre com citações do Alcorão e da Bíblia, mas nunca usa a palavra Deus —Allah, em árabe— nem menciona qualquer evento histórico. Aparecem gênios, criaturas mitológicas anteriores ao islã, e Wantahit, um ser da crença tuaregue associado às secas.

Koni constrói seu deserto particular, no romance, com uma língua bastante arcaica de que ele remove referentes islâmicos. O tradutor Jarouche fez um excelente trabalho reconstruindo o vocabulário em português com palavras esdrúxulas como "algarra", "esbirro" e "algaravia".

Para separar a língua da religião, Jarouche também evitou a tradução corrente da palavra árabe "rassul". Em vez de "profeta", que é hoje o sentido comum, adotou o termo literal "mensageiro".

O romance é, em boa hora, uma porta de entrada para a ficção de um autor ainda inédito no país. Isso sem contar a excepcionalidade de se poder contar com uma voz literária da Líbia, por fim. A Tabla deve publicar no ano que vem o que talvez seja a obra-prima de Koni –"Al-Tibr", ou o pó de ouro.

"O Tumor" não é sempre uma leitura fácil ou clara. Tem essa coisa das alegorias de exigir a decifração de metáforas, que nem todo o mundo busca em um romance. Mas é uma obra forte, viva. Algumas das imagens de Koni —como a ideia de que no deserto tudo tende à esfericidade, porque o vento corrói as bordas— ficam grudadas na pele do leitor, depois de ele fechar o livro.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.