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Cinema

'Paixões Recorrentes', de Ana Carolina, encalha em um impasse alegórico

Novo filme da cineasta de 'Mar de Rosas' reflete crises do presente em personagens isolados numa ilha deserta

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Paixões Recorrentes

  • Quando Estreia na quinta (18) nos cinemas
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Luciano Cáceres, Thérèse Cremieux e Pedro Barreiro
  • Produção Brasil, 2022
  • Direção Ana Carolina

O primeiro plano de "Paixões Recorrentes" escancara a principal virtude do cinema de Ana Carolina: eis uma cineasta que sabe filmar. Filmar, no caso, significa conjugar a beleza de um céu sombrio com a fragilidade do barco que se aproxima do navio de onde desce, por escadas, um passageiro.

O primeiro momento é de algum mistério. Quem será esse homem com sotaque português e, sobretudo, aonde terá chegado? Sabemos que o lugar é uma praia, talvez uma ilha quase desabitada e que ele procura uma jovem por quem está apaixonado.

Cena do filme 'Paixões Recorrentes', dirigido por Ana Carolina - Divulgação

Nessa busca ele encontrará os demais personagens do filme —um insuportável guarda de fronteira argentino, que quer ver todas as pessoas longe dali, uma ex-atriz francesa (ou ainda atriz?) e seu empresário ladrão, além do dono do boteco onde todos ali se encontram.

Depois de muito chorar e gritar, o português (por nome Raolino) encontra sua amada, que se chama mesmo Amada e que não está nem um pouco a fim dele, que correu mundo atrás dela como um personagem romântico do século 19. Ela está muito mais a fim do negro e bonitão Beleza.

Por sorte o ataque de paixão inicial de Raolino é contido graças ao absoluto desinteresse de todos por seu sofrimento, o que evita certas gritarias que tanto prejudica boa parte dos filmes da autora. Caímos então numa alegoria bastante nebulosa, que envolve várias nacionalidades. Temos ali a atriz, representante da decadência europeia, dois brasileiros —o empresário ladrão e o dono do bar, um integralista.

Aí começa a se acoplar o passado ao presente. O discurso nacionalista e mais indigesto do que indigenista de Souza, o dono do bar, é claro que rima com o discurso autoritário da atualidade, com a diferença, talvez, de que o integralismo não era cínico. Raolino, o português, nos remete ao Portugal salazarista, também autoritário, porém, mais retrógrado ainda do que autoritário.

O guarda de fronteira argentino, que detesta todo mundo, é tão raivoso quanto certos militares argentinos do século passado ou certos militares brasileiros do presente. Estabelecido que estamos numa alegoria, duas questões surgem. Primeiro, por que o recurso à alegoria se não temos, ao menos ainda, um Estado autoritário e retorno oficial da censura entre nós? E afinal, é uma alegoria do quê?

Aos poucos desenha-se o que ficará claro no final. Esses personagens fora do tempo, que a partir de certo momento passam todos a discutir sobre o que são, como são e por que são, vivem às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Suas ideias e seus problemas —à parte o fato de existirem numa ilha deserta— datam dos anos 1930, quase um século atrás.

Em suas crenças, cegueiras, raivas e romantismos exprimem aproximadamente as mesmas insatisfações, ansiedades e falta de perspectivas do presente.

Tudo, inclusive as relações entre eles (não todas, mas quase) desembocam em um impasse. Ou são o próprio impasse. Impasse do filme, também.

Pois essa ilha feita de puro pensamento apaixonado pode ser um lugar perdido no mundo, mas mais parece um cérebro povoado por pensamentos tenebrosos, mas pouco claros. Eles envolvem paralelismos entre um presente que o passado não consegue iluminar e terminam por desenhar um cérebro presente que termina, como num gesto histórico às avessas, buscando paralelismos num passado que só se torna mais obscuro.

Ana Carolina parece neste filme mais segura de seu trabalho de cineasta do que da situação e dos destinos de que trata. Admiti-lo é uma virtude, mas que trava o desenvolvimento do filme.

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