Calder e Miró têm a beleza de suas obras construídas na guerra celebrada em mostra

Exposição blockbuster no Rio junta o balé dos móbiles do americano às esculturas vulcânicas do artista espanhol

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Móbile 'Hello Allentown', de Alexander Calder, na mostra 'Calder + Miró', na Casa Roberto Marinho, no Rio de Janeiro

Móbile 'Hello Allentown', de Alexander Calder, na mostra 'Calder + Miró', na Casa Roberto Marinho, no Rio de Janeiro Divugalção

Rio de Janeiro

O choque é grande e logo evapora. Isso porque fica claro, em instantes, que a brutalidade de um reage à leveza do outro. Eles são, afinal, positivo e negativo de uma plástica irmanada. As formas vulcânicas de Joan Miró são o alicerce escondido do balé de cores primárias dos metais de Alexander Calder.

Dizem que os dois se movem no ar, espíritos livres que construíram uma estética idem, de formas soltas, contornos elásticos, gestos expansivos. Mas no encontro mais sublime de "Calder + Miró", mostra espetacular agora em cartaz na Casa Roberto Marinho, no Rio de Janeiro, o espanhol se mostra mais apegado à terra, enquanto o americano levanta voo.

'Femme', de Miró, na exposição 'Calder + Miró', na Casa Roberto Marinho, no Rio de Janeiro
'Femme', de Miró, na exposição 'Calder + Miró', na Casa Roberto Marinho, no Rio de Janeiro - Divulgaçao

Depois dos jardins e do primeiro lance de escadas do casarão no Cosme Velho, a monumental "Tête", escultura de bronze da década de 1970, de Miró, é o abre-alas de uma sala em que móbiles de Calder orbitam uma tela do espanhol.

Em primeiro plano, está o assombro metalizado, uma cabeça de reentrâncias, arestas, recortes angulosos imaginada por Miró. É uma presença acachapante, ameaçadora como pesadelos, sem deixar de se mostrar atravessada pelo campo do desejo, por uma certa tensão sexual latente.

Na escultura cor de carvão, as texturas entram em atrito. Os vazios e cavidades são lustrosos, polidos, evocam o líquido das mucosas. Numa lateral, a rugosidade do metal brilhante é a casca grossa da pele que nos separa e protege de um mundo agreste.

Miró parece visitar aqui os primórdios, o magma que se agita nas raízes da nossa angústia. Fica nítido logo de cara a sua filiação ao surrealismo, aquela arte forjada nos insondáveis subsolos da mente.

A tela logo atrás da escultura e âncora dessa sala, quase toda branca, surge em contraste com o monte negro abrutalhado. Mas pode ser só uma visão enganosa de paz. Isso porque seu frescor da manhã, de nuvens em dia nublado, é vencido por uma mancha vermelha radioativa e três outras formas escuras puxadas por um pequeno ponto azul isolado.

Essa constelação de cores, na mesma posição que muitos dos elementos metálicos dos móbiles de Calder, ecoam as esculturas do americano que ladeiam o quadro. Elas reverberam no ar a placidez plasmada em tinta por Miró.

Os artistas, amigos de longa data, surgem espelhados ali. É o que Max Perlingeiro, que organiza a mostra, chama de "estética de uma amizade". A julgar pela sequência das obras em diálogo pela casa, terá sido um dos mais belos relacionamentos da história.

Calder e Miró, o americano, mais novo, o espanhol, mais velho, se conheceram na Paris fervilhante do fim da década de 1920, já tomada pelo terremoto dos surrealistas, mas logo atravessariam juntos os massacres da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra.

Nesse sentido, é estranha a sensação de alegria e leveza que muitos dos trabalhos extravasam. Saber de todo o sangue derramado ao redor, na raiz da criação de muitas dessas telas e esculturas, desperta no espectador uma vontade de busca pelos índices ocultos do horror numa construção visual que se projeta livre, delirante, desafiando a gravidade.

Calder, famoso por móbiles que pairam no ar, formando um teatro de sombras tremelicantes pelas paredes quando soprados pelo vento, construiu antes deles um arsenal de figuras lúdicas calcadas no universo do circo —mais distante da realidade, distante da ideia de chão, impossível.

Depois, esse desejo de ascensão toma ares literais. Ele mesmo fez o modelo de um avião, numa das primeiras salas da mostra, e tem no jardim seu "Bent Propeller", uma escultura de chapas vermelhas de metal que remete à hélice de uma turbina, mas que de longe pode ser uma flor ou mesmo chamas petrificadas.

Seu uso da folha de metal, um material levíssimo que evoca ao mesmo tempo o poder de fogo da indústria pesada, aponta também para o futuro. Não sem antes ter refletido alguns lados sinistros da história. São seus trabalhos impedidos de decolar, atados à terra por forças maiores.

Uma dessas obras, de grande densidade política e apelo plástico à altura da denúncia que faz, é só lembrada no Rio de Janeiro, mas está até hoje conservada em Barcelona. Sua famosa "Fonte de Mercúrio" é um chafariz por onde escorre o metal tóxico, referência ao sequestro das minas da cidade espanhola de Almadén pelas tropas de Franco, que tentava asfixiar a economia numa das ofensivas finais antes de o ditador tomar o poder.

O brilho, o efeito plástico arrebatador, Calder parece dizer, pode se dar às custas da máxima violência. Na Exposição Universal de Paris, em 1937, Calder mostrou sua fonte ao lado da "Guernica", de Picasso, e do mural "O Ceifador", de Miró, a maior peça do espanhol, representação da morte, que se perdeu —ou foi destruída— logo depois.

Miró então desceu cada vez mais aos porões do desejo, do sexo, como se tentasse neutralizar a destruição da guerra pela visão mais desimpedida do amor, um ato de exorcismo, como já disse seu neto.

Mais do que libido, pensado aqui no sentido de energia vital, as figuras femininas que se espalham por suas obras também são alusão à fertilidade, um gesto de reparação contra a chacina da guerra feito em chave sintética. São traços livres que, no entanto, se repetem como as letras de um alfabeto. As cores são quase sempre primárias e o vazio muitas vezes toma conta de suas telas, como se suas criaturas flutuassem no espaço infinito.

Essa centralidade do traço, do gesto e do movimento sem excessos é talvez o ponto de contato mais forte e nítido entre os dois artistas. E também moldou muito da arte que viria no rastro deles no século 20. As últimas alas da exposição reúnem peças de concretistas e neoconcretistas brasileiros, por exemplo, que não deixam dúvida dos planos de modernidade que eles —em especial pelo contato íntimo de Calder com o país— arquitetaram para essas terras tropicais.

Talvez não fosse arriscado dizer que os relevos flutuantes de cor de Hélio Oiticica, as esculturas geométricas de Franz Weissmann, as peças cinéticas de Abraham Palatnik, a força mutante de Lygia Clark, entre tantas outras ideias, não pudessem tomar forma antes que houvesse Miró e Calder.

Da mesma maneira que eles, o Brasil daquelas décadas de 1950 e 1960 tinha na arte um de seus traços de esperança, arrojo, graça e enorme potência. É irônico, senão triste, que a mostra termine com um projeto de um monumento nunca realizado por Calder pensado para a praça dos Três Poderes, em Brasília, outro território conflagrado por uma guerra que parece longe de cessar.

Calder + Miró

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