Quando Dias Gomes recebeu o convite de Boni para escrever novelas na Globo, não hesitou em aceitar.
Primeiro, porque era 1969 e ele precisava de dinheiro após ter várias peças proibidas pela ditadura. Segundo, porque seria uma oportunidade de extirpar a ideia de que telenovelas —que sua então mulher, Janete Clair, já escrevia há anos— eram subliteratura.
Isso é ele mesmo quem diz em sua autobiografia, "Apenas um Subversivo". "Minha geração de dramaturgos, a dos anos 1960, erguera a bandeira do teatro popular, que só teria sentido com a conquista de uma grande plateia popular, evidentemente."
Mas o teatro, segundo ele, "se elitizava cada vez mais". Agora que lhe ofereciam um público muito mais massivo, "não seria inteiramente contraditório virar-lhe as costas?"
Óbvio que vários narizes se torceram quando o dramaturgo, já consagrado por peças como "O Pagador de Promessas", decidiu migrar para a suposta arte menor da televisão. Reflexo de um preconceito que, apesar de tudo, segue ventilado aqui e ali.
Foi superior, contudo, a recepção positiva. Seus personagens marcados pela mais pura brasilidade foram apresentados a um número cada vez maior de conterrâneos.
Era uma época em que as novelas abandonavam os histrionismos bufões e tiques latinos para se ater mais à vida da gente. Usando uma expressão do autor de "Saramandaia", os Joões da Silva finalmente chegaram à TV, capitaneados por gente como ele e Clair.
O realismo pelo qual o autor primou desde sempre se traduziu em personagens que pareciam frequentadores das mesmas cidadezinhas dos telespectadores. Basta ver a maneira como o público se endereçava a Dias Gomes em cartas.
"Somos ‘fanzocas’ do seu programa ‘O Bem-Amado’, em que, através de sátiras inteligentes, você retrata o Brasil", diz um texto datilografado pela espectadora Lucy Carvalho em 1982, quando o conto de Odorico Paraguaçu passava em formato de série na TV.
A fã diz escrever de Saquarema, litoral do Rio de Janeiro. "Você nem imagina o quanto isso aqui tem de Sucupira! Como temos nos divertido em ver semelhanças entre as duas cidades! E quantas achamos!"
Outro missivista reclama à mão, em letra caprichada, que "vá lá que nunca se inaugure o cemitério", mas "deixar que o tempo corra sem se inaugurar em Sucupira uma zona de baixo meretrício, isso é imperdoável".
"Odorico Paraguaçu poderia ser o prefeito de qualquer lugar", aponta Kety Nassar, uma das curadoras da exposição que exibe farto material sobre Dias Gomes a partir desta quarta no Itaú Cultural.
A mostra deixa claro o talento de Gomes em transitar por todos os meios sem se sentir maior ou menor. Quando foi eleito à Academia Brasileira de Letras, em 1991, estava prestes a estrear a minissérie "As Noivas de Copacabana".
Gostava de dizer que a forma de seus textos era decidida em função do conteúdo —não à toa, alcançou a fluidez de transformar suas peças em filmes, novelas em seriados, com o bafo quente da censura no cangote pela maior parte de sua carreira.
Há um memorando célebre que circulou entre a chefia dos militares nos anos 1970. "Recomendo a todos os censores ler com especial cuidado os textos do senhor Dias Gomes, linha por linha e principalmente nas entrelinhas", com a antepenúltima palavra grifada.
Denominador comum de suas obras, afinal, era exibir um povo comprimido por mandonismos ardilosos. Nassar, a curadora, diz que ele só conseguia pôr histórias como essas dentro da casa das pessoas porque o público se via naquilo. E queria ver mais.
"Convido-o a vir conhecer Sucupira, isto é, Saquarema", terminava aquela carta da fã. "Você vai reconhecer seus personagens em cada esquina."
É certo que Dias Gomes sabia disso —e devia até suspeitar que, cem anos após seu nascimento, suas criações seguiriam perambulando por aí.
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