"Manda buscar", ordena a paulistana Jade Picon, forçando o som de "xis" na segunda palavra, numa de suas primeiras cenas em "Travessia", nova novela das nove da Globo. "Tá surda?", ela pergunta depois, imitando de novo o sotaque carioca.
Não tem jeito. É difícil emular um tipo de pronúncia regional e, se malfeito, fica caricato e esquisito. Picon foi massacrada nas redes sociais por causa das suas tentativas precárias de soar como alguém que cresceu no Rio de Janeiro –e com razão. Ela, que nunca atuou antes, furou a fila e estreou como atriz no horário nobre da emissora.
Picon interpreta Chiara, a única herdeira de um ricaço chamado Guerra. É uma garota mimada que ganha carros de mais de R$ 600 mil, dá festas em casa e gasta seu tempo gravando lives nas redes sociais enquanto se maquia. Foi numa dessas, aliás, que a Globo a usou como desculpa para fazer publicidade de uma marca de cosméticos.
Não é um papel distante da realidade dela, que é filha do empresário Carlos Picon, dono de uma empresa que vende mármore e granito. A nova atriz enriqueceu na adolescência trabalhando como influenciadora digital e ganhou milhões de seguidores.
No começo deste ano, ela foi para o BBB 22, onde liderou uma cruzada contra Arthur Aguiar, queridinho do público na época, e foi eliminada com 84,93% dos votos. Agora, sete meses depois, está de volta à Globo —como uma das novas queridinhas do canal.
As semelhanças entre a sua vida e a da personagem facilitam o trabalho, é claro. Mesmo assim, Picon tem atuado de forma rasa, fazendo carão o tempo todo, sempre preocupada demais em imitar o sotaque carioca, com diálogos que soam engessados.
Seu desempenho fica ainda mais medíocre quando ela contracena com bons atores, como Humberto Martins, que vive seu pai, Cássia Kis, espécie de braço-direito de Guerra, e Chay Suede, um dos protagonistas, com quem ela vai se relacionar.
O primeiro contato entre os dois, aliás, é constrangedor. Ari, o personagem de Suede, caminha pelos corredores da empresa de Guerra e acaba trombando com Chiara. Ela olha para ele de cima abaixo, faz um expressão mandona e exige que ele saia da frente, com seus trejeitos de menina mimada.
É só no capítulo seguinte que a cena continua, com os dois trocando farpas como se fossem crianças. O texto de Gloria Perez não ajuda, é verdade, mas Suede consegue levar a conversa com naturalidade, enquanto Picon só parece exagerada e deslocada.
A química entre o casal não melhora. Numa festa, Chiara para na frente de Ari e passa um minuto criando movimentos sedutores em frente à câmera, como se estivesse num ensaio fotográfico. Picon faz caras e bocas, lança olhares penetrantes, requebra o quadril, balança as madeixas e dá sorrisinhos maliciosos, enquanto Suede a encara com um olhar abobado. É uma cena cafona, como quase todas as outras em que ela aparece.
A escalação dela foi rodeada de polêmicas. Picon quase foi expulsa de "Travessia" por não ter registro profissional de atuação, o DRT, ao ser boicotada tanto pelo sindicato da área quanto por parte dos espectadores. O sindicato só autorizou sua participação na novela com a condição de que ela tivesse 5% de seu salário descontado, segundo Hugo Gross, presidente da entidade.
A ex-BBB pediu que não esperassem perfeição do seu trabalho em entrevista a este jornal. "Estou aprendendo. É só você pegar os primeiros trabalhos de atores e atrizes que verá uma evolução, e é isso que vai acontecer comigo", disse ela, antes de ir para um set de gravação da novela. A influenciadora afirmou também que iria estudar atuação em 2020, mas a pandemia atrapalhou seus planos.
O público tem reagido mal à performance da ex-BBB. Nas redes sociais, há centenas de publicações críticas e debochadas sobre ela. "Jade Picon do céu, quem você ameaçou para colocar você nessa novela, pior atuação já vista na TV nacional", afirma o post de um anônimo no Twitter.
O elenco e a produção de "Travessia", no entanto, são só elogios à influenciadora. Chay Suede diz que está aprendendo muito ao seu lado, e Mauro Mendonça Filho, o diretor, afirmou que ela tem ido bem nas gravações.
O problema é que Chiara é uma personagem desinteressante, unidimensional e que parece ter saído de uma edição ruim de "Malhação", novela que recebia os novatos da Globo antes de ser encerrada no começo deste ano. Isso, combinado à inexperiência de Picon, tem prejudicado um dos principais núcleos de "Travessia".
Não é que Picon precisasse estrear como atriz com excelência, mas um pouco de estudo e mais tempo para se preparar provavelmente teriam feito bem a ela. A novela tem ainda dezenas de capítulos e meses de exibição pela frente. Resta ver como ela vai se sair até lá.
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