Descrição de chapéu The New York Times

Documenta 15 pode enterrar exposição após acusações de racismo e antissemitismo

Evento mais prestigioso do mundo das artes termina cercado de polêmicas com trabalhos ofensivos e falta de curadoria

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Jason Farago
Kassel (Alemanha) | The New York Times

Duas vezes por década, por exatamente cem dias, o mundo da cultura volta seu olhar para a cidade alemã de Kassel para acompanhar a Documenta, gigantesca exposição cujas ambições intelectuais e orçamentos de peso sempre garantiram sua reputação de mais prestigiosa exposição de arte contemporânea do mundo.

A edição deste ano começou muito mal em junho, quando seu trabalho mais destacado, um mural que incorporava caricaturas inconfundivelmente antissemitas, atraiu indignação nacional e precisou ser removido.

Mural no qual foi desenhado um soldado com máscara de porco
Detalhe da obra 'People's Justice', do coletivo da Indonésia Taring Padi, acusada de antissemitismo - Reprodução

A 15ª Documenta se encerrou em 25 de setembro, não antes de provocar outra polêmica que levou artistas, estudiosos e políticos a trocar acusações de antissemitismo e racismo, assédio e incompetência.

Quando um comitê organizador convidou o coletivo indonésio de artistas Ruangrupa para organizar a Documenta, sabíamos que um modelo antigo estava morrendo, mas não teríamos podido imaginar quanto o novo modelo se debateria para nascer.

Era a primeira vez que os próprios artistas eram encarregados de organizar algo que até então havia sido uma exposição profundamente pautada por seus curadores e inspirada em teses.

E os membros principais do Ruangrupa ampliaram seu processo decisório coletivo, fazendo dele um paradigma ainda mais amplo, quando convidaram dezenas de outros coletivos de arte a ir a Kassel e autorizaram esses coletivos a convidar participantes de sua própria escolha.

A exposição foi organizada em gigantescas conferências por Zoom nas quais todo o mundo pôde criar uma grande família feliz e espalhada que batizaram de "lumbung" —celeiro de arroz, na língua indonésia.

Diferentemente de todas as anteriores, esta Documenta girou em torno não de arte ou ideias, mas dos amigos que fizemos ao longo do caminho –os amigos e também os inimigos.

A imprensa alemã foi impiedosa. Jornalistas dos principais cadernos de cultura nacionais descreveram a exposição como "um fracasso", "uma vergonha", "catastrófica" e coisas ainda piores.

Mas a Documenta 15 foi mais bem recebida na imprensa especializada de língua inglesa, que a descreveu como "notável" e "afirmadora da vida", e os críticos se deliciaram com o desdém demonstrado pelo objeto de arte fetichizado e, por extensão, pelo establishment artístico global.

Pessoalmente, deixei Kassel deprimido e desanimado, não tanto pela arte em si, mais ou menos uniformemente esquecível, mas pela indiferença que a exposição demonstrou em relação ao público e sua satisfação evidente em não ser apreciada.

A Documenta original foi montada em 1955 numa Kassel que ainda estava saindo dos escombros da guerra. Foi a primeira grande exposição de pintura e escultura moderna produzida na Alemanha desde a mostra de "Arte Degenerada" promovida pelos nazistas em 1937.

Ela teve um objetivo cívico desde o começo, e desde a renomada 11ª edição, em 2002, a Documenta se posicionou como uma "Weltkunstschau", uma "exposição de arte global" na qual cada diretor artístico procurou expandir e reimaginar o legado iluminista do museu para abranger a criatividade do mundo inteiro.

Sua influência é tremenda, assim como seu orçamento, que este ano foi de US$ 42 milhões, mais que o dobro do custo da Bienal de Veneza.

O Ruangrupa, cujos murais e festas pareceram uma nova onda na Indonésia pós-Suharto, pareceu prometer uma Documenta menos árida e mais sociável, com cabines de karaokê e uma creche. Em vez da teoria pura e das obras de entendimento trabalhoso das últimas quatro edições, nesta Documenta os visitantes podiam ficar à vontade.

Mas o choque das caricaturas antissemitas, pintadas por outro coletivo indonésio, o Taring Padi, lançou uma sombra sobre os cem dias da exposição. E não foi a única controvérsia do evento.

Em outra grande mostra do trabalho do Taring Padi, numa antiga piscina, um desenho de uma figura usando um solidéu redondo indonésio foi coberto pelos artistas com fita adesiva preta para evitar que o solidéu fosse interpretado como sendo um quipá —o nariz comprido do homem que o usava não ajudou.

Outros itens expostos, incluindo uma exposição de panfletos históricos do movimento de independência argelino, tiveram de ser removidos quando visitantes notaram imagens anti-Israel inspiradas em estereótipos antissemitas.

Cartas abertas, entrevistas, manifestações —nada disso acalmou a Documenta. Ade Darmawan, um membro do Ruangrupa, foi chamado para depor diante do Parlamento alemão. Sabine Schormann, a diretora gerente da exposição, pediu demissão.

A videoartista Hito Steyerl, o nome mais destacado da exposição, retirou seu trabalho do evento –e então, demonstrando seu humor irônico habitual, o reeditou para ser mostrado numa loja de vídeos em Kassel fora do espaço da Documenta.

E então, em setembro, explodiu o último e possivelmente o pior dos escândalos desta edição. Envolve uma série de filmes intitulada "The Tokyo Reels", um conjunto de curtas de propaganda política palestina reencontrados alguns anos atrás num arquivo japonês. No dia 10 de setembro um comitê consultivo convocado após a controvérsia em torno do mural pediu a remoção dos "Reels".

E, escrevendo separadamente, cinco dos membros desse comitê atribuíram "o sentimento antissemita e anti-Israel" que tomara conta da exposição diretamente ao Ruangrupa e à Documenta.

Foi a última gota. Em carta aberta, o Ruangrupa e a maioria dos participantes na exposição se voltaram contra seus acusadores em carta aberta em que desancaram os administradores da exposição e o governo, acusando todos de ter "agendas racistas e hegemônicas" e alegando que vários artistas enfrentaram discriminação e xingamentos enquanto estiveram em Kassel.

Os "Tokyo Reels" continuaram sendo mostrados, mas o dano é total e o veneno se espalhou. A artista Tania Bruguera, que assinou a carta aberta do Ruangrupa, lamentou que a Documenta foi "sequestrada" e que "de repente todos nós tivemos que temer que seríamos rotulados de antissemitas por termos tomado parte nesta exposição".

"É uma coisa que você vai ter que carregar a vida inteira", ela disse à revista de arte alemã Monopol.

A coisa toda degringolou em um festival de má-fé e vitimologia, os dois elementos que caracterizam a década de Trump-Twitter –o que não deixa de ser uma ironia para uma exposição organizada sob o signo da amizade.

Mas por que a Documenta terminou dessa maneira? Teria sido o resultado inevitável do choque da "cultura da memória" alemã com o mundo ex-colonizado? Ou houve algo específico no método desta edição da Documenta que levou ao rompimento?

Bem, considere que a repercussão toda em torno dos filmes "Tokyo Reels" só surgiu nos últimos dias da exposição, depois de eles terem sido transmitidos três meses ininterruptamente, num momento em que a imprensa alemã inteira estava atenta para flagrar conteúdos antissemitas.

Do modo como foram projetados em Kassel, em meio a pilhas de material de arquivo apresentado desorganizadamente e de diagramas no estilo de TED Talks, não houve a intenção real de que as pessoas assistissem aos "Tokyo Reels". Enquanto percorriam documentação interminável desta ou daquela reunião ou festa do coletivo, os visitantes começavam a ficar distraídos (de maneira agradável).

Mesmo os organizadores mal se deram ao trabalho de olhar todos os trabalhos expostos. Quando a faixa do Taring Padi foi retirada, os membros do Ruangrupa foram obrigados a admitir que não haviam notado as caricaturas antissemitas antes, apesar de terem erguido o trabalho de 18 metros na praça central de Kassel.

Logo, esta edição da Documenta não foi tanto uma exposição quanto o que meu colega Siddartha Mitter, fazendo uma resenha dela em junho, descreveu muito aptamente como "toda uma vibe". Criar uma vibe foi seu objetivo e foi também o que provocou sua queda.

A Documenta militou intencionalmente contra a possibilidade de ser vista –"o espectador é obsoleto" pode ser lido no catálogo, porque o trabalho real da exposição não era o que estava nas paredes, mas a presença e o movimento das pessoas em volta dele.

Em outras palavras, o conteúdo e forma reais daqueles filmes de propaganda militante palestina dos anos 1970 e 1980 tinham menos importância que o novo grupo coletivo que os levou a Kassel e os outros artistas que se reuniram para participar da vibe com eles.

A coletividade foi tratada como um fim em si. Estávamos ali, como o Ruangrupa nos exortou, para "fazer amigos, não arte".

Soa divertido. Mas o que fazer se a arte de seus amigos é péssima? Esta Documenta "controversa" foi —para falar do que os visitantes viram de fato em Kassel— a mais segura e entediante deste século, fato evidenciado pela virtual inexistência de discussão de qualquer dos trabalhos de arte expostos.

Além dos materiais de arquivo de propaganda política, a exposição foi inchada com materiais de divulgação de workshops aos quais o visitante não era convidado; com vídeos imaturos e toscos que mal chegariam a ser aprovados numa apresentação de alunos de escola de arte, e com inúmeros pôsteres e faixas dignos das paredes de um quarto de adolescente –"esta é minha voz, ouça"– ou de um seminário de treinamento de uma ONG –"nossa meta é respeitar e honrar a humanidade de cada um no espaço, por exemplo utilizando o pronome escolhido por cada um".

No entanto, para uma facção crescente na área da cultura, se queixar do nível lamentavelmente baixo da arte exposta é irrelevante na melhor das hipóteses e exemplo de opressão, na pior. Os artistas têm importância; a arte, não. Compartilhar é valorizar, é ter consideração pelo outro. Passe a cerveja.

Tudo isso foi um constrangimento terrível, mas por que alguém de fora da Alemanha deveria se preocupar com isso? Porque a Documenta sempre foi pioneira –e a edição deste ano sem dúvida identificou uma mudança maior, vista também em nossos museus, nossas escolas de arte e nossas revistas, um distanciamento da ambição estética e seriedade intelectual e um movimento na direção dos confortos mais acessíveis do convívio, do ativismo e da diversão.

Se a arte que seus amigos fazem é ruim, não chega a ser importante –porque estar juntos tem mais importância do que fazer algo bem.

E, se a imprensa alemã disser que a arte de seus amigos é ruim, tudo bem também –na realidade é até tranquilizador, sendo uma prova de que não há espaço para nós no mundo destes colonizadores de merda.

Se o "museu de cem dias", como é conhecida a Documenta, retornar em 2027, provavelmente será com uma edição que marcará um retorno à ordem, mais "conservadora" ou "feita para o mercado" que a deste ano.

Mas duvido que a Documenta suscite o respeito e goze o destaque de antes deste ano, e ela nunca recuperará sua meta de imaginar o mundo inteiro em uma exposição. O sonho de um mundo artístico global morreu, e receio que muitas pessoas, tanto reacionárias quanto radicais, prefiram que seja assim.

A incompreensão e a raiva que esta exposição suscitou são a prova que elas sempre quiseram de que não tivéssemos um futuro comum.

Mas, para citar um homem mais sério que a maioria dos participantes da Documenta 15, o mundo pós-colonial não é "um estado vulgar feito de intermináveis contestações e anomia, caos e insustentabilidade".

O mundo pós-colonial é "um mundo de proximidades", e a função da exposição é fazer esses encontros ser produtivos, significativos, edificantes, belos. Na arte, pelo menos no que ela possui de melhor, "as tensões que regem todos os relacionamentos éticos entre cidadão e sujeito convergem".

Quem escreveu essas palavras foi o curador nigeriano Okwui Enwezor. Ele as escreveu no catálogo da Documenta, que ele organizou em 2002 –cujo rigor e sofisticação inspiraram minha carreira e a de milhares de outras pessoas e cujo legado, apenas duas décadas mais tarde, está estraçalhado.

Enwezor, que morreu em 2019, enfrentou a intolerância alemã ao longo de toda a sua carreira e nunca desistiu do ideal da cidadania global; nunca o abandonou pelo prazer fácil das vibes compartilhadas. Ele com certeza não abriu mão de pensar em troca do conforto do karaokê.

Tradução de Clara Allain

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