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Artes Cênicas

Musical 'O Fantasma da Ópera' deixa a Broadway datado e ultrapassado

Obra de Andrew Lloyd Webber ficou marcada pela opulência cafona e por fazer mais falta ao turismo do que aos palcos

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São Paulo

Anunciado em setembro, o fim da longa temporada de 38 anos de "O Fantasma da Ópera" na Broadway marca o ponto derradeiro de uma era dos palcos nova-iorquinos, que, durante as últimas décadas, teve a máscara branca como símbolo de um dos maiores pontos turísticos da cultura americana.

Cena do musical "O Fantasma da Ópera", na qual o fantasma atrás da mocinha, abraçando-a com o braço esquerdo
Cena da segunda montagem brasileira de "O Fantasma da Ópera" - Camila Cara

O fim se deu meramente por questões financeiras, com a falta de turistas e a inflação galopante do pós-pandemia comendo as cifras da bilheteria semanal da produção. Contudo, verdade seja dita, o fato de o musical não ter envelhecido com a dignidade que se espera de uma obra dessa magnitude talvez também contribua para o fim de sua trajetória.

Há um anacronismo nas análises que leem "O Fantasma da Ópera" como um musical machista, em que a mocinha surge dividida entre o amor doentio e abusivo de dois homens. Um, aficionado por seu talento vocal, almeja que ela seja sua. O outro exige que ela deixe a profissão e, ato contínuo, também seja sua.

De um espetáculo situado no final do século 19, que joga luz sobre a aristocracia francesa, qual outra abordagem se pode esperar das relações amorosas? Esta é uma análise óbvia. Contudo, o problema da obra vai além —e chega efetivamente às canções de Andrew Lloyd Webber.

Celebrado como um dos principais compositores do teatro musical, Webber compôs alguns dos espetáculos mais interessantes da década de 1970, entre eles "Joseph and the Amazing Technicolor Dreamcoat", de 1968, "Jesus Cristo Superstar", de 1970, e "Evita", de 1978, conhecidos como sua tríade dourada, muito graças à colaboração do letrista Tim Rice, responsável pelo mergulho do compositor na contracultura inglesa e no rock progressivo.

A partir da década seguinte, inspirado pelo rompimento com Rice e pelos movimentos kitsch e do glam rock, o compositor deu à luz "Cats", uma das obras mais controversas de sua trajetória, mas sucesso de público e de crítica, angariando um prêmio Tony de melhor musical. A obra não resistiu ao tempo com destreza, e o catastrófico filme de 2019 é a prova contundente de que os gatos talvez devam permanecer fora dos palcos.

O mergulho foi ainda mais profundo em "Song and Dance", de 1982, e "Starlight Express", de 1984, ambos de menor expressão, mas considerados essenciais para que o compositor dobrasse a aposta na opulência de arranjos feitos para grandes orquestras flertando com os sintetizadores eletrônicos, o que resultaria em "O Fantasma da Ópera", de 1985.

O sucesso popular e o Tony de melhor musical fizeram da obra uma das mais celebradas da Broadway, mas a história do triângulo amoroso entre um professor de canto com poderes mágicos, uma cantora talentosa sem vocação para o coro e um conde rico nunca deixou o patamar do cafona para atingir o de clássico romântico.

E muito disso se deve às canções. Embora tenha emplacado alguns títulos dentro do cancioneiro popular, como "Memory", de "Cats" e "Don’t Cry for me Argentina", de "Evita", Webber fez em "O Fantasma da Ópera" uma seleção de músicas que se tornaram meramente folclóricas.

Se a romântica "All I Ask of You" é presença garantida em casamentos ao lado de "The Beauty and the Beast", clássico da Disney, "The Phantom of the Opera", a canção-título, não pode faltar em concursos de calouros que querem mostrar alguma erudição e extensão vocal.

É claro que a obra de Lloyd Webber não foi a única a envelhecer mal. "My Fair Lady", "Anything Goes", "Company" e "Hello Dolly" também se viram vencidas pelo tempo com histórias datadas e relações abusivas ou nonsense. Entretanto, todas contam com grandes canções capazes de sobreviver à história fora das salas de espetáculo.

"I Could Have Danced all Night" e "I've Grown Accustomed to Her Face", de "My Fair Lady", "Being Alive", de "Company", "Before the Parade Passes By" e "It Only Takes a Moment", de "Hello Dolly", não só sobreviveram como já estiveram no repertório de nomes como Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, Diana Krall e outros ases do jazz e da música popular.

Sobre "Anything Goes" não há o que dizer. O repertório de Cole Porter fala por si com títulos que hoje são clássicos infalíveis na voz de qualquer cantor, de Tony Bennett a Lady Gaga. A saber: "I Get a Kick Out of You", "You're the Top", "Blow Gabriel Blow", "Easy to Love" e a música-título são alguns exemplos.

Em "O Fantasma da Ópera" não há nem sequer uma canção que roce o grande songbook popular, assim como não é possível tirar da obra uma música que se aproveite sem a opulência de uma orquestra equipada com sintetizadores.

O mesmo aconteceu com obras posteriores do compositor. Ainda que seja um dos melhores papéis para qualquer atriz madura, Norma Desmond de "Sunset Boulevard" tem um dos piores roteiros para seguir, ainda que ganhe de presente bons momentos, como "With One Look" e "As if We Never Said Goodbye", alçadas ao patamar de inesquecíveis por Barbra Streisand.

Faltou ao Lloyd Webber compositor o senso de eternidade que sobrou ao Lloyd Webber produtor, que soube transformar esses musicais em grandes clássicos do turismo internacional. O autor está longe de ter conseguido a revolução que seu colega Stephen Sondheim proporcionou com obras como "Sweeney Todd", "West Side Story", "Company", "Gypsy", "Follies" e até mesmo o fracasso "Anyone Can Whistle".

Outros nomes, como Jerry Herman, John Kander e Fred Ebb, Stephen Schwartz, Cole Porter e Jule Styne, optaram por se manter eternos pelas canções, mesmo que seus musicais fiquem apenas uma temporada em cartaz.

Ao fechar as cortinas, talvez "O Fantasma da Ópera" faça falta ao cenário turístico da Broadway, que já tem outras obras para substituí-lo ao longo das décadas, como "Chicago", "Wicked" e "Hamilton". Mas, para futuras produções, talvez o melhor seja se afastar dessa obra, que parece não ter mais o que dizer —e que, musicalmente, não adicionou muito ao repertório popular, a não ser o folclore de que musical é uma arte chata.

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