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'De Você Fiz Meu Samba' traz viúvas que viraram oráculos da música

Documentário mostra mulheres no subúrbio do Rio que enfrentaram o machismo e hoje mantêm a história viva

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De Você Fiz Meu Samba

  • Quando Em cartaz na Mostra de SP: Cine Marquise, qua. (2), 14h30
  • Classificação 10 anos
  • Elenco Liette de Souza, Angela Nenzy, Jane Pereira, Denize Correia, Bertha Nutels
  • Produção Brasil, 2022
  • Direção Isabel Nascimento Silva

Além do espaço reservado no repertório de qualquer roda de samba, há algo mais em comum entre músicas como "Todo Menino É um Rei", "Judia de Mim", "O Show Tem que Continuar", "Coração em Desalinho" e "Sonho Meu".

É o que mostra o filme "De Você Fiz Meu Samba", de Isabel Nascimento Silva, que bota sob os holofotes as vidas das viúvas dos compositores de todas essas canções, mortos sem o devido reconhecimento.

Exibido na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o documentário visita cinco mulheres que mantiveram relacionamentos com autores de clássicos do gênero. Elas lidam com o luto e transformam suas casas em verdadeiros museus, com letras e gravações inéditas, ideias de músicas registradas em pedaços de papel, fotografias e LPs, além das próprias lembranças.

Cena do filme 'De Você Fiz Meu Samba'
Cena do documentário 'De Você Fiz Meu Samba' - Reprodução

A relação de Liette de Souza, Angela Nenzy, Jane Pereira, Denize Correia e Bertha Nutels —viúvas de Roberto Ribeiro, Wilson Moreira, Luiz Carlos da Vila, Ratinho, Delcio Carvalho, respectivamente— com seus companheiros envolvia sacrifícios. Muitas delas abriram mão das próprias vidas e tiveram de enfrentar o machismo cotidiano, o abandono e a infidelidade dos parceiros ao longo dos anos.

Ratinho, autor de sucessos como "Vai Vadiar", famosa com Zeca Pagodinho, "O Dia se Zangou", com Jovelina Pérola Negra, e "Parabéns pra Você", com o Fundo de Quintal, era casado com Denize Correia. Ela se lembra de passar madrugadas sozinha, enquanto o sambista trabalhava nas rodas de samba.

"Ele chegava de manhã, e eu com dois filhos. Nem sempre eu ia. Então, foi a época da anulação mesmo", ela diz no filme. "Vivi muitos anos pelos meus filhos. Agora, vivo minha vida, minhas escolhas. Ele tinha que ir para as rodas, mostrar as músicas, ver parceiro, combinar de fazer fita nova."

Monarco, compositor histórico que morreu em dezembro do ano passado, era o principal parceiro de Ratinho. É impagável a cena em que ele, ao lado de Correia, comenta como fizeram "Coração em Desalinho", cujos versos desembocam num refrão épico.

Correia se emociona ao se lembrar do marido, de quem morria de ciúmes, a ponto de rasgar folhas do caderno com composições que ela julgava terem sido feitas para outras mulheres. É uma relação de afeto e dor, em que a ausência e a sensação de solidão vêm antes mesmo da morte.

"Ele saía muito com o Monarco, mas também ia à casa do Zeca [Pagodinho], encontrava Arlindo [Cruz], ia à quadra do Cacique [de Ramos] toda quarta", ela diz. "O dia amanhecia, aí chegava ele. Aí já tinha uma briga rolando. ‘Preciso divulgar o samba, ver os cantores que estão escolhendo.’ Então isso foi marcante na nossa vida. Me sentia meio excluída porque eram 24 horas da ‘Denize mãe’."

Viúva de Roberto Ribeiro —autor de "Todo Menino É um Rei", além de intérprete e bamba frequentador do Clube do Samba, de João Nogueira—, Liette de Souza conta como mudou de vida após a morte do marido, em 1996. "Não me afastei da escola, me afastei do samba", diz. "Porque tudo isso eu fazia com o Roberto. A gente era a corda e a caçamba."

"De Você Fiz Meu Samba" traz imagens antigas de ícones como Dona Ivone Lara e Cartola a Beth Carvalho e Candeia, tendo o subúrbio do Rio de Janeiro como plano de fundo. É interessante perceber como o espaço, ele próprio esquecido por poder público e mídia, espelha o que acontece com a maioria dos sambistas do país e dos compositores retratados no filme —pouco reconhecidos, existindo hoje em suas canções e através de suas viúvas.

Essas mulheres se tornam pesquisadoras, oráculos de uma memória inestimável para o gênero musical mais importante da cultura brasileira. Autor de "Judia de Mim" e "Quintal do Céu", entre muitas outras, Wilson Moreira tem pastas de manuscritos guardadas por Angela Nenzy, que passou a ser empresária dele, além de produtora cultural e ativista do movimento negro.

Jane Pereira passou a vender jiló na Feira das Yabás, em Madureira, e também guarda o material do marido, Luiz Carlos da Vila —autor de "O Show Tem Que Continuar", conhecida com o Fundo de Quintal, entre outras. "Até cupim já deu, mas não comeu essa fitinha."

Mas "De Você Fiz Meu Samba" chega ao ápice quando promove um encontro entre Silvia Carvalho e Bertha Nutels, respectivamente a mulher e a empresária de Délcio Carvalho —autor de "Esperanças Perdidas", clássico dos Originais do Samba, e "Sonho Meu", de Dona Ivone Lara. Boêmio, levando uma vida sem rotina, ele deixou cerca de 400 composições gravadas, mas não seria nada sem essas duas mulheres.

"Ele nunca foi numa reunião de condomínio, e eu fui síndica duas vezes", diz Silvia Carvalho. O marido levava uma vida dupla, e Bertha Nutels —que mantém o acervo com a obra dele— se lembra que mesmo assim as duas mulheres se respeitam. "Sempre tive um carinho pela dona Silvia. Quando ela ia a show do Délcio, eu não ia. Eu, no fundo, era a amante."

Emociona a cena das duas cantando juntas "Esperanças Perdidas" enquanto caminham pelo corredor do prédio. É uma lembrança da capacidade dessas mulheres de ressignificar as dores de suas vidas com criatividade e cumplicidade, sendo essas as emoções que abastecem e constituem o próprio samba.

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