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Marília Mendonça é até hoje a sertaneja mais feminista que já existiu

Cantora, morta há um ano, continua a ser a que mais cantou sobre feminismo no gênero, embora recusasse esse rótulo

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São Paulo

Marília Mendonça nunca se definiu como feminista. Em entrevista a este jornal cinco anos atrás, ela disse que até "gostaria de falar com a boca cheia" que, sim, era militante do movimento, mas, como se depilava, cuidava da casa e não aderia a modinhas —em suas palavras—, não poderia se declarar feminista. Mesmo assim, um ano depois de sua morte, Mendonça é a sertaneja que mais cantou sobre feminismo.

A cantora de música sertaneja Marília Mendonça durante show em Bauru, no interior paulista - Adriano Vizoni/Folhapress

A cantora mudou o sertanejo, com composições que confrontam homens, falam abertamente sobre sexo e, acima de tudo, dão conselhos "de mulher para mulher" —como diz um de seus maiores hits, "Supera". Isso era algo que não existia no gênero antes dela —ou ao menos não de maneira significativa.

Embora Marília negasse ser militante do feminismo, a cantora não relutava em dizer que lutava pela ideia de que a mulher pudesse ser o que quisesse. Como reflexo, suas músicas mostram diferentes facetas das angústias femininas e não hesitam em debochar do machismo.

Em "Folgado", uma mulher abandona o parceiro que tenta controlar suas atitudes. Ela enfatiza que não deve nenhuma satisfação ao moço e que nem sequer pediu sua opinião. "Da minha vida cuido eu", avisa o vozeirão grave de Mendonça.

Ela também cantou sobre relacionamento tóxico em "Por Mais 3 Horas", do mesmo álbum de "Folgado", gravado em 2016, quando tinha 19 anos. Na canção, o eu-lírico feminino reflete sobre as violências às quais foi submetido, com um homem que a sufocava e controlava.

A letra traz ainda as complexidades desse tipo de relação, que faz a vítima não se enxergar como vítima e ter dificuldades em terminar com o agressor. Aqui, a personagem sabe que o namorado é mau caráter, mas acaba cedendo ao impulso sexual e o convida para três horas de prazer, mas sob a condição de que ela esteja no comando.

Ao lado de Maiara e Maraísa, em "Patroas", Mendonça voltou a falar de controle masculino sobre o corpo das mulheres, repreendendo a misoginia disfarçada de ciúmes e contestando a masculinidade do agressor, dizendo que ele precisa aprender a ser um homem de verdade. "Vira Homem" também traz um discurso parecido, mais voltado às dores de uma mulher que está cansada de ser traída.

Traição, aliás, é um tema recorrente nas canções de Mendonça, que ficou conhecida como a rainha da sofrência. São várias as letras em que ela tem como protagonistas mulheres enganadas por juras de amor fajutas. Nem todas as composições, no entanto, são na perspectiva do coração iludido.

Em "Ciumeira", a cantora assumiu o papel da amante. Em vez de a retratar como alguém insensível e vulgar, a amante é uma mulher cheia de sentimentos cansada de ser apenas um objeto sexual para o traidor. A verdade, cantou, é que amante não quer ser amante.

A mesma reflexão atravessa "Bem Pior Que Eu", na qual o eu-lírico fica dividido entre negar o que é moralmente visto como pecado e se entregar a uma grande paixão. A personagem até sente culpa por ser amante, mas está certa de que errado mesmo é o homem que insiste em enganar a namorada.

A culpa pela pecha de destruidora de lares domina ainda "Amante Não Tem Lar", em que uma mulher é julgada por todos ao redor e decide abrir o jogo com a mulher do traidor num pedido de desculpas. A cantora também assumiu o papel de traidora em "Coração Bandido", novamente ao lado de Maiara e Maraísa. Na letra, ela debocha da ingenuidade do parceiro que não consegue ver os próprios chifres.

Se ser amante e traidora não é algo bem visto pela sociedade, que dirá ser prostituta. Mas Mendonça mais uma vez foi na contramão dos estereótipos e retratou essa persona sob outros contornos. "É claro que ela já sonhou em se casar um dia/ Não estava nos planos ser vergonha pra família", cantou em "Troca de Calçada".

Distante do ideal de mulher recatada, o sexo sem amor também atravessa sua obra. Em "Não Sou Novela", por exemplo, o eu-lírico feminino zomba do parceiro que se apaixona após uma transa. Ela se gaba do talento na cama, mas deixa avisado que só está a fim de gozar.

O tom de deboche também está em "Sem Sal", na qual a mulher ironiza um ex que conta mentiras sobre a ela, e "Passa Mal", em que a figura feminina se vinga de um canalha. Letras como "Até o Tempo Passa" e "Supera" soam como um abraço apertado em mulheres que vivem desilusões amorosas.

Maiara & Maraísa e Simone & Simaria fazem parte da mesma geração do feminejo com hits também calcados em ideais feministas, mas Marília Mendonça é ainda quem tem a discografia mais robusta em termos feministas, abrindo caminho, mesmo depois de morta, para figuras como Mari Fernandez e Ana Castela, duas cantoras da nova safra de vertentes do sertanejo.

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