Mostra de Judith Lauand expõe radicalidade da única mulher do grupo Ruptura

Retrospectiva no Masp vai do figurativismo até a racionalidade geométrica, sem escapar do feminismo da artista centenária

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'Sofre, Ore e Salve', obra de Judith Lauand realizada 1969, agora em mostra no Masp Divulgação

São Paulo

Em resumo, Judith Lauand é uma artista radical. Aos cem anos, a única mulher que integrou o grupo Ruptura ganha sua maior mostra, "Judith Lauand: Desvio Concreto", reunindo 124 obras, numa retrospectiva no Museu de Arte de São Paulo, o Masp.

Dispostas em ordem cronológica, as pinturas expostas no primeiro andar do museu evidenciam a busca permanente da artista pela renovação. O primeiro núcleo da mostra, organizada por Fernando Oliva, data ainda de sua fase figurativa.

Obra de Judith Lauand em exposição no Masp - Divulgação

São obras que lembram composições cubistas, seres construídos por retas retorcidas, objetos, eles próprios, representados por figuras semigeométricas. É o caso de "Operário", de 1951, uma tela que mostra um trabalhador talhando seu material de trabalho. As cores, acinzentadas, sugerem todo o esforço daquele homem, bem como o ambiente opressivo em que o retratado é flagrado.

Antes mesmo das formas que se espalham pela tela, é curiosa a escolha do retratado. Se o traço de Lauand indica certa filiação à revolução empreendida por Pablo Picasso, tematizar as condições de trabalho de um operário afirma a nacionalidade brasileira da pintora.

Não é um dado desimportante. Os artistas concretos sempre foram acusados de certa alienação formalista, isto é, nenhum deles incluía em seus trabalhos as temáticas mais urgentes, que afligiam a sociedade brasileira.

Sob o aspecto visual, o que se ressalta é o tom amarelado com que Lauand retrata o trabalhador, com uma forma que é delimitada por tinta preta, com um pincel finíssimo. É o amarelo contra os vários tons de cinza ao fundo que imprime ao retratado certa apatia, ou melancolia mesmo, refletida no azul de suas ferramentas e vestimentas. Lauand usa uma estratégia parecida em "Moça Sentada", de 1950.

Ali, a cor amarela é ainda mais viva, ressaltando a figura da mulher, à frente de planos que se insinuam abstratos, em verde, marrom, azul, cores que dialogam com a personagem. E o mais importante —a mulher está olhando para baixo, como se mirasse os próprios sapatos.

Nascida em Pontal, no interior de São Paulo, Lauand esteve cercada pela arte desde a primeira infância, numa casa em que se ouvia boa música e onde se liam bons livros. Em 1950, se formou na Escola de Belas Artes de Araraquara —daí o domínio técnico exibido nos trabalhos da primeira fase.

Num ato de mecenato, a família Lupo convidou a jovem artista para estudar na Itália, mas não conseguiu a permissão de seu pai. "Ela foi a transgressora da família", diz Elisa Lauand, sobrinha-neta de Lauand. "E nunca se casou, chegou a fazer uma cópia de um anel de noivado e ficou usando, para não ter confusão com os pais."

Quatro anos depois, a artista trabalhou como monitora da segunda Bienal de São Paulo. Na ocasião, a jovem entrou em contato com a efervescência cultural do circuito das artes plásticas à época. Conheceu, então, as obras de Geraldo de Barros e Alexandre Wollner.

Também em 1954, Lauand realizou a primeira exposição individual da carreira, na galeria Ambiente. No ano seguinte, Waldemar Cordeiro a convidou para integrar o grupo Ruptura, movimento que disseminaria os ideais do concretismo na arte brasileira.

No interior do grupo, ocasionou, ela própria, uma explosão. Tanto que o espectador se espanta com a radicalidade pela qual Lauand se liberta da figuração para alcançar a abstração geométrica.

"Ela já trabalhava com formas elementares em suas primeiras obras, então não virou uma concretista de repente", afirma Oliva, à frente da mostra. "Não só ela seguia as regras do concretismo, mas experimentava a partir das cores, aliando isso ao estudo da geometria."

Como símbolo dessa libertação, surge uma obra em que um cubo, formado por fios azuis e roxos, é entrecortado por quadriláteros. Pontiagudos, eles incidem nos triângulos, estruturantes de cada parte do cubo. É, em última instância, uma ode à geometria espacial, como se todas as formas orbitassem ao redor do cubo flutuante.

Noutra obra, Lauand também imprime a sensação de movimento em suas obras. Uma linha divide uma tela em duas partes desiguais —em preto e branco. No centro, a linha divisória forma um ângulo bem aberto e, ao seu redor, pequenos triângulos verdes, parecidos com setas, apontam para cima, para a diagonal ou, dependendo da perspectiva, para baixo.

Após a explosão concretista, a artista passa a usar tachinhas, alfinetes e dobradiças, objetos que afixa nas telas. Assim, consegue criar novas texturas e relevos para as suas obras, que parecem puzzles ou jogos de tabuleiro. Entre fitas azuis, alaranjadas e vermelhas, o olhar se perde, sendo fixado só pelas tachinhas coloridas —amarelas, vermelhas e verdes.

No caso dos alfinetes, observamos superfícies planas e coloridas, com a saliência dos objetos dentro das telas, provocando certa tensão entre o plano afixado à parede e os alfinetes. Lauand também faz uma síntese do concretismo e da arte pop, se valendo de palavras em algumas obras.

A palavra "atenção" é escrita em amarelo em letras garrafais. Abaixo, está "agora", em letras verdes contra um retângulo da mesma cor. Depois, ainda lemos "pare" e, finalmente, encaramos a sequência "olhe, hoje, veja", circundada em tom vermelho, que clama pelo olhar imediato do espectador.

Foi pelo domínio da forma que a artista impôs sua atitude feminista. O quadro "Mulher Fumando", de 1969, traz a marca de sua transgressão com delicadeza. A retratada abraça o seu companheiro, cujo rosto não nos é revelado, enquanto traga um cigarro, como se aquele lugar fosse um fardo.

"Ela tinha uma inquietação muito grande para lidar com novos materiais, tinha até uma atitude masculina", diz a galerista Berenice Arvani, que representa a artista. "Era uma mulher muito à frente de seu tempo."

Judith Lauand: Desvio Concreto

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