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'A Morte Habita à Noite' evoca Bukowski numa Recife onírica e amarga

Primeiro longa de Eduardo Morotó evoca mundo marginal de Charles Bukowski com ótima atuação de Roney Villela

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Neusa Barbosa

A Morte Habita à Noite

  • Quando Em cartaz nos cinemas
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Roney Villela, Mariana Nunes e Endi Vasconcelos
  • Produção Brasil, 2020
  • Direção Eduardo Morotó

Para além da tendência de desconstrução dos personagens masculinos que se observa no cinema brasileiro —vista em filmes como "Deserto Particular" ou "Sol"—, o drama "A Morte Habita à Noite", do estreante em longas Eduardo Morotó, oferece uma notável contribuição com seu protagonista, Raul, papel de Roney Villela.

Inspirado no universo literário marginal do escritor americano Charles Bukowski e expandindo um curta anterior —"Quando Morremos à Noite", de 2011—, Morotó mostra um escritor frustrado, alcoólatra, que extrai a sobrevivência de trabalhos precários, num mercado de peixe ou numa oficina mecânica, no Recife.

Esse ambiente no limite da pobreza, que remete ao de "Amarelo Manga", de Cláudio Assis, não contamina, no entanto, os sentimentos que ele imprime aos seus relacionamentos. Ele mantém uma doçura cuidadosa com as mulheres que ama ou com quem apenas convive.

Cena do filme 'A Morte Habita à Noite', de Eduardo Morotó
Cena do filme 'A Morte Habita à Noite', de Eduardo Morotó - Divulgação

Em relação a elas, até se transforma num protetor paternal, manifestando uma ética resistente em situações em que outros não hesitariam em tirar vantagens, ou até em partir para a cafajestagem.

Raul fala baixo, nunca grita, recusa a violência e expressa seus pensamentos por um olhar e uma atitude quase sempre melancólicos, num ceticismo que flerta com a ironia mas nunca se dissocia da ternura.

É assim que ele trata Lígia, vivida por Mariana Nunes, a mulher com quem ele dividiu alguns anos e muitos copos e agora parece cansada de um modo de vida sempre a um passo do esgotamento.

Há também uma pulsão de morte se insinuando nesta rotina depauperada, em que as garrafas se esvaziam em série e uma nota fúnebre se projeta quando um corpo cai do apartamento acima, sua sombra passando pela janela.

Entre as muitas perdas acumuladas numa existência que perdeu as esperanças, Raul manifesta uma impotência em mudar o rumo das coisas, uma entrega ao tempo presente, sem expectativas nem amargura. Há uma aura de conformismo em torno dele, como um instinto, uma obrigação de continuar vivo sem depender de nenhum esforço e que, apesar de tudo, ou por isso mesmo, o torna visível aos outros —como à jovem Cássia, papel da notável estreante Endi Vasconcelos.

A moça representa uma outra chave, como uma chama de vida marcada por uma ultraexposição que se emparelha com uma busca de destruição, por mais que Raul a proteja de alguns de seus excessos. Assim, eles são dois pontos opostos numa escala de cores —ele, um cinza; ela, um vermelho a ponto de explodir.

É uma terceira mulher, Inês, vivida por Rita Carelli, que é também corroteirista, quem imprime uma mudança de tom mais drástica, à história até aqui realista. Assumindo um tom onírico, o filme corre seu maior risco e experimenta seu momento mais luminoso —um mérito da direção e também da fotografia discreta de Marcelo Martins Santiago, que enlaça organicamente estes momentos discrepantes.

Roney Villela, hoje com 61 anos, experiente ator de teatro, vive seu primeiro protagonista no cinema. É um verdadeiro achado para que Raul tenha vida e autenticidade. Colheu os prêmios de melhor interpretação masculina nos festivais Infinitto Film e no Cine Ceará, onde foi exibido em 2020, depois de uma première mundial em fevereiro do mesmo ano, em Roterdã.

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