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Magnífico, 'Autobiografia de um Polvo' é reflexão sobre escrita dos animais

Livro singular mistura ciência e ficção para reacender os sentidos sobre aqueles com quem dividimos o mundo

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Taís Cardoso

Cientista social e curadora, é mestre em história, teoria e crítica de arte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Autobiografia de um Polvo

  • Preço R$ 62 (160 págs.)
  • Autoria Vinciane Despret
  • Editora Bazar do Tempo
  • Tradução Milena P. Duchiade

Ursula K. Le Guin, pioneira na escrita de ficção especulativa, criou num conto a disciplina da therolinguística, que consistiria num ramo da linguística dedicado a estudar nada menos do que a produção escrita dos animais.

Para compor "Autobiografia de um Polvo", a filósofa da ciência e psicóloga Vinciane Despret parte do conto de Le Guin. O resultado é um livro tão singular quanto imersivo, composto por três narrativas independentes, mas que fazem referência uma à outra, habitando um universo em comum que mistura filosofia, ciência e ficção.

Capa do livro 'Autobiografia de um Polvo', de Vinciane Despret
Capa do livro 'Autobiografia de um Polvo', de Vinciane Despret - Divulgação

No livro de Despret, o texto de Le Guin é tratado pelas personagens como um arquivo histórico que se tornou um clássico, e a therolinguistica é um campo do conhecimento consolidado. As histórias se passam em um futuro distante no qual o século 21 e o capitalismo já são parte do passado.

Por meio de relatórios e cartas trocados entre pesquisadores, nos inteiramos sobre inquietações tais como a correlação entre a comunicação por vibração das aranhas e o surgimento de tinnitus nos aracnólogos expostos; ou a função literária, simbólica e religiosa dos muros fecais entre os vombates; ou ainda o processo de tradução de fragmentos de textos feitos com tinta de polvo em restos de cerâmicas encontradas por pescadores.

Como as inusitadas premissas anunciam, as histórias são repletas de um bom humor sagaz e afetuoso, mas não sem alguma melancolia. A última das três, que é também o capítulo mais longo que dá título ao livro, é especialmente tocante.

Nela, Despret especula sobre uma possível extinção dos polvos entremeada a uma das reflexões sobre autismo mais sensíveis e potentes já vistas.

Embora num primeiro momento algumas reflexões desafiem nossas noções sobre a natureza, é muito habilidosa e surpreendente a maneira como, ao longo do livro, Despret vai entrecruzando um futuro especulativo e aparentemente distante com pesquisas que vêm acontecendo no presente.

Ela menciona até vídeos que encontramos disponíveis na internet, materializando o inimaginável em segundos. Dessa maneira, não só amplia as dimensões do que está sendo dito, mas também desenvolve uma narrativa que é coletiva.

Como, por exemplo, quando se vale da reflexão de Baptiste Morizot, filósofo interessado em investigar os rastros deixados pelos animais e que aparece no livro como um therolinguista precursor. Morizot salienta como uma característica selecionada para determinada função, como as penas nos ancestrais das aves —inicialmente responsáveis pela termorregulação— podem ter sido "desviadas" para outra como o voo.

Despret aplica essa reflexão à capacidade dos polvos de produzir jatos de tinta, voltada a sua camuflagem, e que em algum momento da evolução também teria sido utilizada por eles para desenvolver uma linguagem escrita. A adaptação evolutiva vinculada à questão da criação é uma questão central em boa parte das investigações que compõem o livro.

Sua publicação, vale dizer, fortalece uma faceta do feminismo da ciência que finalmente ganha corpo no Brasil, por tempo demais representada unicamente pelo "Manifesto Ciborgue" e pelo artigo "Saberes Localizados", de Donna Haraway.

A autora é também interlocutora de Despret e aparece no livro como a responsável por um texto "tão bem documentado" que "seus membros o encararam como sendo o guia que os deveria orientá-los em suas escolhas e seu espaço vital, tal como um roteiro ou um programa", criando uma comunidade —um desfecho que Despret adoraria que o seu próprio livro também tivesse.

Somadas à sua relevância política, o livro conta ainda com outras tantas percepções magníficas. Tal como o entendimento das aranhas como as primeiras a desenvolverem uma tecnologia de conservação dos acontecimentos, sendo a teia uma memória material e externalizada de comportamentos, de técnicas e de estilo.

Ao exercitar sua sabedoria com tamanha idiossincrasia, Despret sugere novos caminhos para enfrentarmos um mundo em colapso, atormentado por uma crise climática em curso.

Considerando como nós, humanos, convivemos com outras espécies unicamente através da domesticação, da dominação ou do nosso entendimento deles enquanto praga, "Autobiografia de um Polvo" vem para reacender os sentidos, revisando com quem e com o que povoamos nosso mundo.

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