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mostra de cinema

Filmes em Tiradentes mostram pós-Bolsonaro e histórias de esquecidos

'As Linhas da Minha Mão', de João Dumans, e 'O Cangaceiro da Moviola', de Luís Rocha Melo, levam dureza a festival mineiro

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As Linhas da Minha Mão

  • Classificação 14 anos
  • Produção Brasil, 2023
  • Direção João Dumans

O Cangaceiro da Moviola

  • Classificação 14 anos
  • Elenco Severino Dadá, Nelson Pereira dos Santos, Kátia Mesel
  • Produção Brasil, 2023
  • Direção Luís Rocha Melo

Quem quiser apreciar "As Linhas da Minha Mão", filme de João Dumans que teve sua primeira exibição pública na Mostra de Tiradentes, em Minas Gerais, precisará de um pouco de paciência. As primeiras cenas prometem pouco —de início, uma mulher e seu parceiro ("coach", amigo, parceiro, tanto faz) fazem exercícios físicos em um gramado. Basicamente, é como se se alongassem para um dia de trabalho.

Logo em seguida entramos em uma casa. Velas, imagens e mesmo uma discussão sobre o trabalho. A horas tantas, a mulher afirma que deve decorar o texto, pois é uma atriz. Nunca saberemos, no entanto, se ela decorou o texto ou se o criou, ou até que ponto criou. Mas isso virá com o tempo. Por enquanto, o que temos é uma discussão do tipo metalinguística. Convém pôr o pé atrás.

O editor de cinema Severino Dadá em cena do filme 'O Cangaceiro da Moviola', de Luis Alberto Rocha Melo
O editor de cinema Severino Dadá em cena do filme 'O Cangaceiro da Moviola', de Luís Alberto Rocha Melo - Divulgação

O que se segue desmente a expectativa um tanto negativa. Viviane de Cassia Ferreira, em poucos, pouquíssimos, planos, fechados sempre em seu rosto, com fundo desfocado, fala sobre si mesma. Será "si mesma" um texto ficcional ou estamos diante de um documentário? A dúvida não deixará de existir. Talvez, até, as duas instâncias se recubram ou se alternem.

No entanto, pouco a pouco ela se torna irrelevante. Aos poucos ela deixa de ocupar o espírito do espectador, seduzido pela narrativa. Ela é simples como a vida. Portanto, nada simples. Lá estão conflitos, profissionais ou não, viagens ou esperanças de viagem, amores.

E, por fim, mais do que tudo, o mal. Estamos diante da experiência mais corriqueira —uma paciente está sem a assinatura de um médico em sua receita, precisa dela com urgência, parece que o mundo se importa pouco com sua urgência. Não todo o mundo. Ela é mandada de um profissional a outro até que alguém prescreve devidamente o remédio.

A narrativa se torna tensa, não pelo fato em si, mas por tudo que arrasta com ele —as dores da profissão (atriz), as dificuldades familiares ou as decepções amorosas. Elas como que rebatem num mal em que psiquiatra, psicanalista, psicólogo surgem como emanação de uma doença que se confunde com o excesso de desejo, de vida (ou ao menos parece isso) em um mundo que fica praticamente fora da imagem, mas a tensiona permanentemente.

No fim, a estreia de João Dumans —até aqui colaborador, ou cúmplice, de Affonso Uchôa— parece afirmar uma personalidade que se manifesta tão mais forte quanto produziu o filme em plena pandemia e com os recursos limitadíssimos de um trabalho que recebeu todas as bênçãos que o governo Bolsonaro concedeu às artes em seus quatro anos, o que quer dizer nada.

Não mais fácil terá sido a empreitada de Luís Rocha Melo, apesar da amplitude em princípio limitada. Esse professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Minas Gerais, tomou por objeto Severino Dadá, veterano montador nascido em Pernambuco que desceu ao Rio de Janeiro fugindo da repressão da ditadura —ele fora locutor dos comícios de Miguel Arraes— e aos poucos se afirmou como um mestre da moviola —o instrumento usado para a montagem de filmes nos idos do cinema analógico.

Cena do filme 'As Linhas da Minha Mão', de João Dumans
Cena do filme 'As Linhas da Minha Mão', de João Dumans - Divulgação

Rocha Melo o designa "O Cangaceiro da Moviola". Pode parecer injusto —Dadá é um nordestino tão afável quanto incansável contador de casos. Mais, através dele podemos ver um tanto desse percurso frequente que marcam as relações de Nordeste e Sudeste.

Ao mesmo tempo, é reencontrar a última geração de cineastas com experiência realmente popular —com isso dizendo que chega ao cinema por outros meios e conhecimentos que não a universidade—, recuperar (ainda que de passagem) a importância dos técnicos ditos "da pesada" —eletricistas e maquinistas. Nesse sentido, Rocha Melo esboça —ou inicia— a filmagem de uma história do cinema pela ótica dos esquecidos.

Esquecidos, por sinal, lembrados por Dadá, que continua tão socialista como na sua juventude, como atesta sua participação na luta pela criação do sindicato dos técnicos e artistas em cinema. Mas também, e até de forma mais enfática, por dedicar o primeiro filme que dirigiu a Geraldo José, mitológico —nos meios profissionais— profissional dedicado ao som.

Em uma palavra, "O Cangaceiro" parece ser menos um ponto de chegada do que a abertura para a escrita em imagens de uma parte muito mais relevante do que se imagina do cinema brasileiro.

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