Pablo Picasso, morto há 50 anos, é coroado em mostras e cancelado por feministas

Exposições se estendem da Espanha até São Paulo, enquanto ataques lembram mulheres que o artista teria maltratado

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Autorretrato de Pablo Picasso, de 1906, atualmente no Museu de Arte da Filadélfia Succession Picasso 2022

Madri

Orgulhosa de seu filho Pablo Picasso, a Espanha planeja para este ano um ambicioso programa de comemoração dos 50 anos da morte do maior pintor do século 20 —a data exata é dia 8 de abril. Os 15 maiores museus espanhóis terão exposições especiais com suas obras, entre eles o do Prado e o Reina Sofía, em Madri, e os museus dedicados a Picasso em Barcelona e Málaga.

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Pablo Picasso em seu estúdio em frente à obra 'La Cuisine', em retrato de 1948 - Herbert List/Magnum Photos via Imagine Picasso

A comemoração é mundial, com pelo menos 50 mostras espalhadas pelo mundo. Também é grande na vizinha França —onde o artista viveu 69 de seus 91 anos— e se espalha inclusive pelo Brasil —onde pelo menos uma mostra, a imersiva "Imagine Picasso", estreia em março.

Não faltarão obras para essas paredes, uma vez que o inventor do cubismo é um dos artistas mais prolíficos da história. Seu catálogo raisonné, espécie de lista com todas as obras conhecidas de um artista, conta mais de 15 mil peças, mas estudiosos alçam a cifra a até 45 mil, incluindo milhares de desenhos, gravuras, litografias, esculturas, cerâmicas e até mesmo algumas tapeçarias.

Um de seus quadros, "As Mulheres de Argel", ocupa atualmente o terceiro lugar entre as mais caras do mundo, atrás de "Shot Sage Blue Marilyn", serigrafia de Andy Warhol vendida por US$ 195 milhões em 2022 e "Salvator Mundi", de Leonardo Da Vinci. A obra do pintor espanhol foi vendida em 2015 por US$ 179 milhões.

Tudo isso, entretanto, está sob escrutínio após o MeToo, que, desde 2017, tem posto sob os holofotes acusações de abuso, assédio ou agressão sexual perpetrados por homens contra mulheres. Junto ao politicamente correto, o MeToo tem promovido revisões de artistas que possam ter ferido os ideais do movimento, mesmo que esses artistas e obras pertençam a outro momento histórico.

E Picasso nunca foi santo. Foi casado com duas mulheres, mas teve inúmeras amantes e um envolvimento mais profundo, a ponto de as retratar em seus quadros, com pelo menos oito. Machista, egoísta, infiel e cruel, o artista, dizem, tinha o costume de marcar com duas ao mesmo tempo para que se encontrassem em seu ateliê e brigassem por ele.

É comum encontrar artigos e estudos que as tratam como "as mulheres cuja vida Picasso destruiu", enfileirando casos de abusos de álcool, internamentos psiquiátricos até mesmo suicídios realizados após a morte do artista.

Portanto, não é de espantar quando, há alguns meses, a professora de arte María Llopis tenha levado suas alunas a um protesto no Museu Picasso, em Barcelona. Elas usavam camisetas com frases como "Picasso agressor" e "Picasso abusador de mulheres".

Protesto no Museu Picasso de Barcelona organizado pela professora de arte María Llopis com suas alunas - María Llopis/Arquivo Pessoal

Outra aluna trazia nas costas o nome de oito dessas amantes —Eva Gouel, Olga Khokhlova, a primeira mulher, abandonada, Fernande Olivier, Marie-Thérèse Walter, que se suicidou, Françoise Gilot, a única que o abandonou, Geneviève Laporte, Jaqueline Roque, a segunda mulher, que também se matou, e Dora Maar, que passou por tratamento de eletrochoque.

"No caso de Dora Maar, ela era uma renomada fotógrafa surrealista em Paris quando conheceu Picasso", diz Llopis, que se apresenta como artista, escritora, ativista e feminista. "Eles se relacionaram e Picasso a incentivou a abandonar a fotografia, na qual era respeitada, e começar a pintar, no que ela não se destacava. Várias biografias de Picasso descrevem como ele a deixava inconsciente após espancamentos."

"O que tento ensinar é a importância de perceber quando um relacionamento corta e anula nossa criatividade. E a fugir dele! Existem muitas mulheres artistas que viram suas carreiras serem interrompidas por se envolverem nesse tipo de relacionamento. Alma Mahler chegou a assinar um documento em seu casamento no qual era proibida de continuar compondo e só poderia se dedicar às obras do marido [o compositor Gustav Mahler]", afirma Llopis.

"Nenhuma mais! Essas realidades devem ser trazidas à tona para que não se repitam. Daí a ação no Museu Picasso", afirma Llopis, que dá um curso de arte e feminismo online, no site cursos.mariallopis.com.

Apesar de ter liderado um protesto como esse, ela não acreditava que a saída é o cancelamento. "Eu gostaria que alguma energia fosse dedicada à análise de seu trabalho, o que inclui o tema dos abusos. Não acho que o trabalho de ninguém deva ser cancelado. Que perda seria ser privada da maravilhosa arte de Picasso. Mas reconheçamos também a perda que é a obra de artistas como Dora Maar."

A revisão do artista está presente em muitas dessas exposições que farão parte deste ano dedicado a Picasso. É o caso, por exemplo, de uma mostra em preparação no Museu do Brooklyn, em Nova York, pelas curadoras de arte feminista e europeia da instituição.

"A ideia é revisitar uma figura histórica que, gostemos ou não de sua biografia, continua exercendo papel fundamental na história da arte. Ele costuma ser apresentado como o gênio que lançou a modernidade ou como um monstro. Mas as duas coisas podem estar certas", afirmaram Catherine Morris e Lisa Small ao diário espanhol El País.

A presidente do Museu Picasso em Paris, Cécile Debray, também acredita ser importante lançar luz à problemática. "Os desafios que esse aniversário representa são múltiplos. Exibir um artista também significa levantar interrogações. Picasso tem detonado protestos do MeToo, agravados por especulações maliciosas e, por isso, acredito que uma abordagem histórica vai proporcionar a distância adequada para a análise", diz ela. "Encontrar o equilíbrio entre honrar seu legado e chegar às gerações mais jovens exige cuidado e precisão."

Segundo a historiadora de arte Androula Michael, "Picasso é o maior pintor do século 20 e, com Marcel Duchamp, revolucionou o curso da arte moderna e, posteriormente, da arte contemporânea".

"Se outros artistas abriram o caminho no reexame dos cânones do Renascimento —Manet, Monet, Cézanne, Matisse—, Picasso foi o primeiro a questionar radicalmente. Olhou para a arte pré-histórica, a arte grega pré-clássica, a arte romana, a arte de África e da Oceania para afirmar a importância da diversidade das culturas. Atravessou o século 20 sem se repetir, criou uma obra reconhecível entre todos sem nunca copiar os outros."

Tela 'Yo Picasso', autorretrato de Pablo Picasso, feito em 1901 - Succession Picasso 2022/Divulgação

Michael é a organizadora da "Imagine Picasso", exposição imersiva que será realizada no Brasil entre 9 de março e 18 de junho, no MorumbiShopping, em São Paulo. A mostra, que já passou por Lyon, na França, Québec e Vancouver, no Canadá, Atlanta e San Francisco, nos Estados Unidos, e está agora em Madri, exibe projeções gigantes de mais de 200 obras do artista.

Ela afirma, no entanto, que há uma tendência hoje que deve ser esclarecida —a de "como Picasso é um artista famoso que encarnou, para o público em geral e para os jornalistas, o artista masculino superpoderoso", diz. "Muitos, portanto, fazem uma história de identificação. É uma visão que explica a obra através da personalidade, do psiquismo de um artista, tentando até sondar seu inconsciente –muitas vezes distorcido."

"Ouvimos que Picasso teria pintado uma forma torturada porque vivenciou um trauma ou que desconstruiu as formas porque odiava as mulheres e as violentava. Mas é o mesmo tratamento que Picasso também reservava à paisagem, aos objetos —não significa que os odiasse. Não devemos, confundir a representação pictórica com o motivo", diz Michael.

"O trabalho não deve ser interpretado em termos de personalidade. Acusações recentes contra Picasso são baseadas em fatos hipotéticos de sua vida para criar uma imagem apocalíptica dele como um homem misógino que era violento com suas mulheres e companheiras. Ele é até acusado pelo suicídio de sua última mulher, Jacqueline Roque, ocorrido 13 anos após a morte do artista. Jacqueline, segundo testemunhos, continuou a reservar um lugar à mesa para Picasso depois da morte dele."

Além das projeções, a "Imagine Picasso" traz pranchas resumido a vida do artista, além de uma linha do tempo e frases dele. Segundo a Annabelle Mauger, outra das criadoras da exposição, este é o momento certo para tantos questionamentos.

"Cada mostra de Picasso nos permite levantar um debate, com uma distância saudável sobre o artista. O movimento MeToo é um dos mais significativos da nossa época e essa exposição é também a ocasião de lembrar às mulheres que eles jamais devem ser vítimas de violência", diz Mauger. "Picasso morreu há 50 anos, mas não esqueçamos que o feminismo é um combate permanente. Espero que esta exposição relance a discussão também em São Paulo."

Imagine Picasso

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