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Carnaval mudou e escolas viraram empresas, disse Cartola; relembre entrevista

Um dos principais nomes do samba, compositor disse em 1978 que modernidades nos desfiles comprometiam a tradição

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São Paulo

Em 1978, o compositor Cartola andava pessimista com os rumos do Carnaval. Um dos fundadores da Mangueira, ele achava que as modernidades introduzidas naquele período comprometiam as tradições das escolas de samba.

As tais inovações eram o uso de alegorias suntuosas e destaques em cima de carros alegóricos, elementos que hoje são considerados básicos nos desfiles. "O Carnaval mudou demais. Agora, escola de samba está virando empresa. Nada mais", disse ele a este jornal naquele ano, dando um parecer pouco animador à folia carioca. "Não há mais Carnaval no Rio de Janeiro."

O compositor, cantor e instrumentista Cartola em sua casa, no bairro de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro, durante a comemoração do seu aniversário de 70 anos - Ubirajara Dettmar/Folhapress

Considerado um dos principais nomes do samba, Cartola compôs clássicos como "O Mundo É um Moinho" e "As Rosas Não Falam". Suas letras ganharam vida nas vozes de Cazuza, Beth Carvalho e até de Carmen Miranda. Apesar disso, ele disse que o trabalho de compositor dava pouco retorno financeiro.

"Não compensa, não. Ainda não se ganha o suficiente. A gente faz as coisas e grava. Faz sucesso e o dinheiro não aparece", afirmou o compositor, acrescentando que ganhava mais dinheiro com shows do que com direitos autorais. "Não sei se é má organização, má administração. Não sei o que é. Eu sei que a gente não vê o dinheiro."

Confira abaixo os principais trechos da entrevista com o repórter Octávio Ribeiro.

Como é a reação do público em seu show no teatro, Cartola? É boa. Graças a Deus é muito boa. Casa cheia, muitos aplausos e povo elogiando muito o espetáculo.

Como é que é? É você sozinho, quem acompanha? O conjunto Galo Preto. Os rapazes são choristas, mas o Zé Luis os chamou para trabalhar comigo. Nós fizemos uns ensaiozinho e eles se adaptaram bem a mim.

Quais são as músicas que você canta? Canto 21. São músicas do primeiro, do segundo LP, do terceiro e canções novas.

São quantas horas o show? Uma hora e meia o show. Essas minhas músicas não são músicas grandes. A maioria delas é pequena. A maior das que eu canto é "Lucila", do Nelson Cavaquinho, duas minhas com Carlos Cachaça. O resto são músicas pequenas.

Você tem quantas músicas, Cartola? Ah, não sei. Fiz tantas músicas, esqueci algumas de maneira que eu não tenho certeza. Mas tenho umas 50 e poucas gravadas.

E como é que é esse negócio de direitos autorais? Compensa isso ser compositor? Não, ainda não compensa, não. Ainda não se ganha o suficiente. A gente faz as coisas e grava. Faz sucesso e o dinheiro não aparece.

Para você, qual é o motivo disso? Não sei se é má organização, má administração. Não sei o que é que é. Eu sei que a gente não vê o dinheiro. Eu defendo mais é fazendo show, porque é quando eu ganho mais dinheiro. Ganho mais do que com direitos autorais.

Todos os compositores e cantores falam isso. Todos. Todos nós reclamamos essa coisa de que o dinheiro e a arrecadação não compensam o nosso sacrifício.

Como é que você faz as músicas? A gente faz. Às vezes, nasce naturalmente. Às vezes, a gente começa a fazer naturalmente um pedaço depois a gente tem dificuldade em completar. A gente perde tempos e horas para procurar completar a harmonia e a letra.

E qual é o seu ponto de inspiração? É boteco, é beco, é barraco, é o quê? Não, minha inspiração é minha casa. Em botequim, não faço música. Eu não canto em botequim. Eu não toco em botequim. Eu toco na casa de um amigo, em um teatro, mas em botequim eu não entro para tocar e cantar.

Agora, Cartola, das suas músicas, qual é a que você mais gosta? Diversas, como "O Mundo É um Moinho", "As Rosas Não Falam", "Sim", "Tive Sim" e "Acontece".

E o que é que você acha dos compositores novos? Tem muitos garotos bons. Eu cito um exemplo melhor dos que eu posso citar —o Chico Buarque de Hollanda. É novo, um bom garoto, um bom compositor.

Fala um pouco de Mangueira, Cartola. Mangueira vai aí vivendo devagar. Andando, tropeça daqui, levanta dali. Graças a Deus este ano nós fomos mais recompensados, porque no ano passado nós pegamos o sétimo lugar, mas este ano pegamos o segundo.

Foi um desastre aquele sétimo lugar. É, foi. E eu acho que há um pouco de erro dentro da Riotur [órgão de turismo do Rio de Janeiro] nessas coisas aí. Por exemplo, a Mangueira, no ano passado, entrou atrasada dez minutos e ela perdeu na cronometragem cinco pontos.

Esse ano várias entraram atrasadas, até uma hora de atraso, mas ninguém perdeu na cronometragem. Não há um critério justo nessa coisa. Depois tem tanta coisa. A Riotur bota jurados lá que não entendem nada de escola de samba. Esse bailarino, que deu dez para todo mundo e esqueceu de dar a nota à Mangueira, ele nunca entrou numa escola de samba.

Ele devia estar dormindo e acordou, deu dez para todo mundo, certo? Claro. Ou podia estar acordado, mas, por não entender nada, ele disse "dou dez para todo mundo porque não entendo nada disso". "Vou dar dez e está acabado." Colocam pessoas que não têm critério. Um cara desse nunca foi numa quadra.

Como é que vai julgar uma escola de samba? Não é possível acontecer uma coisa dessa. Então, se eu nunca joguei futebol, eu vou chegar no Flamengo e dizer "eu vou jogar pelo Flamengo hoje, me dá a bola que eu vou lá, sou centroavante?". Eu nunca joguei futebol, né? Está tudo errado.

Quando a Mangueira passou houve aquela invasão de pista. O que é que você acha disso, já que você estava lá desfilando? Aquilo ali é o pior lugar em que botaram a gente. Muita lama, muita sujeira, entende? Muito apertado, invasão de público, eu não sei. Você via gente da Riotur lá, mas não resolveram nada. Virou aquela bagunça.

Depois que Natal, um dos dirigentes da Portela, morreu, a escola caiu muito. E sempre sobressaiu nos dias das apurações, certo? Ele vetava o envelope, ele gritava, ele fazia tudo. Você acha que tem mesmo esse mecanismo nas apurações, tem muita política? Eu acho que Natal era um líder dentro da Portela, né? E, depois que o Natal morreu, falta uma pessoa de pulso ali, como falta em quase todas as escolas para reagir na hora certa contra certas falhas do turismo, do policiamento, de tudo. Falta em quase todas as escolas.

Você, que é um antigão no desfile de Mangueira, acha que o desfile antigamente era melhor ou pior do que o de agora? Era muito melhor. Todas as escolas que desfilam até hoje não são ricas. Então você sabe —Mangueira, Portela e Salgueiro, era tudo do mesmo nível. Num ano uma ia um pouco mais rica, outra um pouco mais pobre, mas naquela situação. Não era como agora, que nós temos uma Beija-Flor aí que vai ganhar quantos carnavais quiser, porque não há escola de samba que possa chegar ao nível da Beija-Flor no capital, em fortuna.

Você acha que a escola Beija-Flor faz um samba no pé na avenida ou é só luxo? Eu achei mais luxo do que outra coisa. Carrões muito grandes, muitas mulheres à vontade em cima dos carros. No pé mesmo... Tem quem diz que ganharam no pé, mas eu não vi. Eu conheço um pouco disso. Eu sou veterano nessas coisas.

Então você acha que o Carnaval está mudando? Está mudando, não. Já mudou e demais. Agora, escola de samba está virando empresa. Nada mais.

E quem ganha nisso dentro das empresas, quem ganha? Eu acho que quem ganha muito nisso é o turismo, certo?

(Dona Zica, esposa de Cartola, entra na sala.)

Dona Zica, me diga como foi aquela experiência no restaurante Zicartola. Porque eu fui várias vezes lá, sempre vi aquela casa cheia, todos os seus amigos. Como é que foi aquela experiência?

Cartola: O negócio de eu abrir o restaurante para mim foi uma experiência. Não ganhei dinheiro, ganhei muitos amigos, voltei a gravar, nessa época comecei a aparecer.

E você voltaria a fazer outro restaurante?

Cartola: Não, jamais na minha vida. Estou tão bem assim.

Zica: Deixa eu falar um pouquinho.

Zica, você chegou em boa hora. Eu estava conversando com ele sobre escola de samba. O que é que você achou do segundo lugar para a Mangueira?

Zica: Achei bom, achei que ela desfilou bem, desfilou para o Carnaval que ela tinha para apresentar, que era o "Cinquenta Anos de Glória". Não podia ser um Carnaval rico, porque há 50 anos não havia plumas e essas coisas. Então ela teve que maneirar, né?

Cartola: Você sabe que eu vi uma entrevista do Faria Lima lá em Brasília. Ele dizia que estava muito preocupado com as escolas, porque estão acabando, estão virando um show, um teatro ambulante.

Zica: A Beija-Flor tem todo o poderio na mão dela, porque ela tem o município de Nilópolis todo. Tem três banqueiros e, além disso...

Banqueiros de jogo do bicho, né?

Zica: É, são banqueiros —o maior negócio deles. Mas eles têm também um negocinho, uma farmácia, um armarinho, porque também não pode ficar só de banqueiro. O resto não vale a pena a gente se aprofundar, né?

O primo dele é o prefeito de Nilópolis, então botam tudo no nome dele. E eles estão ganhando nome. Quem é que conhecia o David? Quem é que conhecia o Nelson? Eles querem fazer aquilo que o Natal fazia. Eles dão presentes, presenteiam a Riotur, coisa que as outras escolas não podem. Eles são município, né, nós não temos nada. O que é que nós temos aqui?

Um monte de barro, com umas casinhas. Mas tem muito samba, tem muita tradição. Se não contasse a alegoria, quem é que ganhava?

Zica: Se não contasse alegoria era Mangueira mesmo que engolia tudo.

Cartola: Eu sou contra alegoria em escola.

Zica: Porque aqui é o samba, é o reduto do samba.

Carola: Eles mesmo sabem disso e eles mesmo dizem.

Zica: Eles respeitam a Mangueira.

Cartola: Porque Mangueira é povo.

Zica: Por aí o senhor vê. Nas arquibancadas, não teve para ninguém. Era só "Mangueira, Mangueira!". Mangueira é o segundo Flamengo, né? Agora, aqueles que conhecem o samba, conhecem a raiz do samba, não deixam de ser Mangueira. Acho que está discutido.

Mas a Mangueira tem que pensar sempre do terceiro para baixo.

Cartola: Sem dúvida, daí para lá.

Zica: Então, a Mangueira sempre sofrendo, a Mangueira mesmo é pobre, não tem dinheiro. A nossa renda são os sócios. É o povo que entra nos ensaios. Nós não temos comércio. Só essa tendinha. O que é que essa tendinha pode assinar no livro de ouro? O que nos ajuda são as indústrias de fora, um pouquinho. Com o Bira [então presidente da escola] nós arranjamos algumas ajudas de fora. Mas nós vivemos sem dinheiro, nós fizemos o carnaval sem dinheiro, nós temos débito do Carnaval.

Então é fome comprando fome?

Zica: E se a Mangueira puder arranjar, porque pode de uma hora para outra aparecer quem a ajude. E se ela fizer um Carnaval igual ao deles vai cair a tradição dela, porque a escola vai deixar de ser a Mangueira tradicional. Vai aderir também a eles.

E além de Mangueira e Beija-Flor?

Zica: As outras escolas também já estão querendo puxar para aquele lado. Afinal de tudo, Beija-Flor tinha destaques, mas no resto era tudo a mesma coisa. Tirava o azul botava branco, tirava o branco e botava o preto e branco. Era a mesma fantasia, aquelas rafias, aquele aro amarrado nas pernas, caminhão carregando aquele isopor. Todas que você olhava eram a mesma coisa, não tinha diferença de figurino.

Se o Natal fosse vivo o que é que ele faria com esse tri da Beija-Flor?

Zica: Com o Natal, não ia ter isso, não. Porque ele tinha coragem para virar a mesa.

Cartola: Ele virava a mesa porque o negócio está muito bagunçado. Você sabe o que precisava acontecer? A Riotur deveria ter um método diferente de trabalho, vamos dizer. Ter os quesitos certos. "Só pode ser isso, só pode ser aquilo." Mas agora vale tudo, veio carro motorizado, que não podia. Tinha medida dos carros, agora não tem mais.

Zica: E só podia desfilar com quatro metros de comprimento e tantos metros de altura.

Cartola: Não podia trazer figuras em cima do carro. Agora traz, vale tudo, estão esculhambando.

Zica: É aí que digo que está valendo poderio. Olha, quando começaram as escolas de samba, a Vizinha Faladeira era metida a Beija-Flor. Rica, né? Eram os estivadores, então no primeiro ano eles vieram motorizados

Cartola: Com comissão de frente de moto-limosine.

Zica: Foram desclassificados. Outro ano, vieram a cavalo, foram desclassificados. Outro ano, vieram de moto. Foram desclassificados. Aí acabou a Vizinha Faladeira.

Quando eu vou para avenida, não olho cara, eu olho pé, certo? Eu vejo escola de samba igual tatu, olhando para o chão. Esse negócio de cara bonita, eu vou ver em outro lugar, certo? Eu acho que o samba é esse. É o pé junto com a bateria, eu quero o ritmo.

Zica: A gente sai porque gente gosta de sair, mas já não está mais aquele Carnaval gostoso, não.

Mas isso é em qualquer lugar. O Bloco do Suko, na rua, terminou.

Cartola: Bom. A conclusão é que não há mais Carnaval no Rio de Janeiro.

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