Descrição de chapéu Alalaô

Como os sambas de Carnaval desaceleraram e voltaram a falar sobre os temas do povo

Após anos de enredos patrocinados e baterias metralhadoras, escolas miram memória afro-brasileira e botam o pé no freio

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Desfile da Grande Rio no segundo dia da divisão de elite do carnaval carioca, na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro Thiago Lara/Riotur

São Paulo

Para o Carnaval de 2023, Mestre Ciça preparou um andamento um pouco mais lento. Mestre de bateria há mais tempo em atividade no Rio de Janeiro, ele —em conjunto com diretores e carnavalescos— puxou as rédeas da bateria da Unidos do Viradouro, escola de samba conhecida pela agilidade e pelo expressivo naipe de caixas, sob o apelido de Furacão Vermelho e Branco.

"A bateria é pegada, mas com um andamento mais confortável", diz Ciça. "Puxei um pouco para trás, para o samba poder ser bem evoluído na avenida. Estou feliz pela cadência da bateria. É a proposta da escola."

Desfile da Grande Rio no segundo dia da divisão de elite do carnaval carioca, na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro
Desfile da Grande Rio no segundo dia da divisão de elite do carnaval carioca, na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli

Vice em 2019 e campeã no ano seguinte, a Viradouro volta à Sapucaí com um desfile sobre Rosa Maria Egipcíaca, escravizada com dons espirituais que foi a primeira mulher negra a escrever um livro no Brasil. A escola canta a "santa que o povo aclamou" por cima de um andamento que não passa de 144 BPM (batidas por minuto).

Essas são duas movimentações que vêm se intensificando nos últimos carnavais —a redução do tempo de algumas baterias e a retomada de enredos mais conectados com o povo, com destaque para o resgate da memória afro-brasileira. Para Luiz Antônio Simas, historiador e coautor do livro "Samba de Enredo: História e Arte", essas são algumas das razões para uma melhora recente nas safras de sambas-enredo.

"O Carnaval deste ano confirma uma tendência —um bom enredo já é meio caminho andado para um bom samba", ele diz. "Houve um período em que o samba de enredo realmente estava por baixo. Tivemos uma queda muito grande de qualidade."

Simas liga essa decadência, acentuada entre as décadas de 1990 e 2000, ao processo de profissionalização das escolas, e consequente seleção de enredos que privilegiam acordos comerciais em detrimento dos interesses do público. Trata-se de um paradoxo —os sambas começaram a piorar conforme as escolas enriqueceram.

Era uma época em que a economia do país ia bem, e as empresas passaram a patrocinar os enredos. "Só que eram patrocínios difíceis de carnavalizar", diz Simas. "É difícil desfilar com enredo sobre companhia aérea ou de gás, marca de xampu ou camisinha. Ou então com grana de prefeituras de cidades com histórias que como você vai carnavalizar?"

Se os anos 1970 e 1980 marcaram um auge de popularidade dos sambas de enredo, impulsionados por uma pujante indústria fonográfica, as duas décadas seguintes, a grosso modo e com exceções, não foram tão brilhantes. Estudiosos como Spirito Santo, no livro "Do Samba ao Funk do Jorjão", também apontam para uma estagnação criativa nas baterias.

"A espontaneidade que o ritmista tinha no passado acabou —e eu sinto falta. Hoje o desfile é todo perfilado, antes botava lá 200 e tantos homens e vamos embora", diz Ciça, com 66 anos de idade, sendo mais da metade deles comandando baterias no Carnaval.

É um processo de resposta aos critérios dos jurados, cada vez mais técnicos, já que os diretores de bateria trabalham todo o ano para corrigir o que foi apontado como erro no Carnaval anterior. De certa forma, as baterias já saem com um dez, mas a cada detalhe apontado como erro, vão perdendo pontos.

Mestre Ciça, mestre de bateria da Unidos do Viradouro, escola campeã do carnaval carioca de 2020, posa para retratos na Avenida Marquês de Sapucaí, o sambódromo
Mestre Ciça, mestre de bateria da Unidos do Viradouro, escola campeã do carnaval carioca de 2020, posa para retratos na Avenida Marquês de Sapucaí, o sambódromo - Lucas Landau/UOL

"Um prato, pandeiro ou um ganzá que eles achem que está sendo tocando na frente, perde ponto. Então, isso não existe mais nas escolas", diz Ciça. "Hoje você faz uma afinação da marcação de primeira e tudo tem que estar igual. Os jurados hoje pegam muito nisso. Tem que tocar tudo direitinho, não pode oscilar."

Ganhar o Carnaval, também uma consequência da entrada de dinheiro, se tornou mais importante do que ter um samba na boca do povo. "A gente é tolhido. As escolas se profissionalizaram demais. Existe muita regra dentro do samba, porque a competição é de alto nível. As baterias ficaram comportadas demais."

Mas a última década trouxe algumas transformações. Hoje, se um ritmista não consegue ir a um ensaio por motivos de trabalho, ele pode aprender o desenho, por exemplo, de um tamborim, através de vídeos enviados pela internet, para tocar no dia do desfile.

O perfil do ritmista, diz Ciça, também mudou. "A garotada estuda música, faz aula de percussão, coisa que não existia. São muito bons, chegam perto de mim e fico assustado. Se deixar, querem voar. Mas a minha experiência, com a juventude deles, faz a coisa acontecer."

Em março, Simas publica uma nova edição de seu livro sobre os sambas de enredo, parceria com Alberto Mussa, originalmente lançado em 2009. No posfácio, eles refletem sobre os últimos anos de desfiles.

"O fim dele era melancólico. A gente praticamente decretava a possibilidade da morte do gênero", diz o historiador. "Mas o posfácio constata uma melhoria."

Simas esclarece que não está fazendo uma "apologia da miséria", mas acredita na relação do dinheiro com a qualidade dos enredos. "Quando o dinheiro começou a sumir, as escolas de samba tiveram que apelar para enredos autorais, né? Então você deu mais liberdade ao artista, ao carnavalesco e isso melhorou."

O ano de 2012 foi marcante nesse sentido. A Porto da Pedra desfilou um enredo patrocinado, chamado "Iogurte, do Império Otomano às Cortes Europeias". "Mas, ao mesmo tempo, você tem dois sambas de excepcional qualidade —da Portela, sobre a Bahia, e da Vila Isabel, sobre as relações entre Angola e Brasil. Mas vem melhorando com o tempo, não teve uma virada. Vem se desenhando uma melhoria."

Nesse processo, a ascensão de políticos que faziam ataques ao Carnaval, como o ex-prefeito Marcelo Crivella, do Republicanos, no Rio de Janeiro, e Jair Bolsonaro, do PL, em âmbito nacional, geraram reações das escolas. A mais marcante delas é o desfile da Mangueira, em 2019, com samba político e exaltando Marielle Franco.

Neste ano, além da Viradouro, temas brasileiros e afro-brasileiros surgem na Mangueira, com "As Áfricas que a Bahia Canta", e na Beija-Flor, com "O Grito dos Excluídos no Bicentenário da Independência", entre outros. Há também um olhar autorreferente, como a Portela comemorando seu centenário este ano.

No ano passado, a Vila Isabel homenageou Marinho da Vila, e este ano, a atual campeão, Grande Rio —vencedora no ano passado com um enredo sobre Exú—, celebra Zeca Pagodinho. Já o Império Serrano dedica o desfile a Arlindo Cruz.

Paralelamente, a velocidade está diminuindo. "As baterias estão cadenciando mais. Gente que trabalha com formação de opinião em escolas de samba desceu o sarrafo nesse tipo de coisa", diz Simas. "É claro que não vão tocar a 113 BPM como tocavam em meados da década de 1970. Mas na virada dos 1990 para os 2000, eram metralhadoras, estavam virando frevo", diz Simas.

Nos últimos anos, a Mocidade Independente de Padre Miguel chegou a desfilar com uma bateria a 137 BPM —redução considerável quando comparado aos quase 160 BPM de algumas baterias, duas décadas atrás. Em 2020 e 2022, a Grande Rio foi à avenida um samba a 143 BPM.

Ciça fez parte desse processo. "Fiquei calado por muitos anos em relação a isso, mas agora tenho falado —a responsabilidade pelo andamento é de todo mundo", diz. "Em escola organizada, mestre de bateria não decide o andamento. Você senta para conversar com o presidente e diretores. Se decide o que é melhor para a escola."

Ele fez carreira tocando perto dos 150 BPM na Estácio de Sá, e levou essa abordagem para a Viradouro, com baterias pegadas e as caixas em evidência. "Só que tem um detalhe —minha levada de caixa me propunha a fazer isso. Então, posso tocar em 148 BPM, mas vou tocar suingado, fazer todas as viradas."

Ele admite que "houve um exagero lá atrás", e se considera um dos responsáveis por isso, mas agora faz uma autocrítica. "Mudou para melhor, com andamentos mais confortáveis."

O que não mudou —e parece algo insolúvel— é o distanciamento do chamado "povo do samba" dos sambódromos. Os ingressos, caros, passaram a atrair mais turistas e uma classe média pouco versada na musicalidade que vai à avenida, com camarotes disputados e recheados de atrações paralelas.

"O público que vive aquilo, não tem acesso ao espetáculo", diz Simas. "Isso prejudica o desempenho. As arquibancadas em geral são frias, tanto no Anhembi quanto na Sapucaí."

Hoje, diz Ciça, para sentir o samba de enredo em sua pulsação máxima, é melhor ir a um ensaio técnico. "No dia do desfile, cai mais ou menos uns 50% do que você viu no ensaio. Carnaval é caro, né? Estou reclamando com você, mas tenho que aceitar isso."

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