Como a Royal Academy, escola britânica, angaria talentos do violão brasileiro

Segundo conservatório mais antigo do mundo realiza audições em São Paulo, em busca de jovens promessas para seu elenco

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São Paulo

Certa feita, o escritor Mário de Andrade disse que pôr um piano de cauda na sala de estar era símbolo de distinção social. Intérprete do Brasil, o autor de "Macunaíma", de 1928, talvez tenha se enganado. O violão tocado aqui criou uma linguagem única, permeando os repertórios popular e erudito. Bem antes da bossa nova, Heitor Villa-Lobos vislumbrara uma nação grandiosa compondo para o instrumento.

O violonista Plínio Fernandes - Divulgação

Mais associado às camadas populares, o violão encontrou muitos praticantes durante o século 20. O repertório erudito ainda não é tão escrutinado quanto o popular, mas dois dos grandes violonistas clássicos da atualidade são brasileiros.

Fábio Zanon, de 56 anos, e Plínio Fernandes, de 28 anos, foram alunos da Royal Academy, prestigiosa escola de música da Londres. O segundo conservatório mais antigo de música do mundo fará audições pela primeira vez no Brasil, nesta segunda-feira, na Escola de Música do Estado de São Paulo, a Emesp.

Nascido em Jundiaí, no interior paulista, Zanon é o mais importante violonista do Brasil na atualidade. Em 1990, ele estudou na escola e, desde 2009, atua como professor-visitante, indo a Londres de três em três meses. Nas aulas, o instrumentista se encarrega de polir as necessidades de cada aluno.

Sendo vasto o repertório latino-americano, ele conta que sua ajuda acaba sendo bem-vinda aos alunos. Vencedor do prêmio Francisco Tárrega, na Espanha, Zanon já se apresentou na Filarmônica de Berlim e no Tchaikovsky Hall, em Moscou.

Foi ele mesmo que incentivou Fernandes a ingressar, há uma década, na Royal Academy. Nos anos 2010, Zanon deu aulas ao jovem músico e o orientou a estudar fora, primeiro um bacharelado, depois um mestrado.

"Plínio não teve uma evolução explosiva, foi um aprendizado gradual, o que é um ótimo exemplo, não é necessário ser explosivo, é possível ser metódico", diz ele, que lançou, no ano passado, um álbum dedicado aos "Doze Estudos", de Francisco Mignone. "Se Villa-Lobos era um compositor da natureza, Mignone era do ser humano e da cidade."

A Royal Academy é um dos destinos mais disputados entre os jovens violonistas. Afinal, por lá passaram as duas principais referências do instrumento no pós-Guerra, John Williams e Julian Bream.

Mas as audições feitas agora no Brasil não se restringem ao violão. Todas as disciplinas serão avaliadas, com exceção de teatro musical, jazz e ópera —embora inscrições para cantores também tenham sido abertas.

No dia, os candidatos terão tempo de se aquecer e poderão levar um acompanhante. Na sequência, devem apresentar, com o uso de biombos, uma peça previamente estudada, para a análise do representante da escola, o musicólogo Timothy Jones. Todos devem passar ainda por uma entrevista, em que os candidatos devem argumentar por que desejam ingressar na escola, pontuando seus interesses em música.

Fundada em 1822, a Royal Academy já acolheu talentos tão díspares quanto a cantora Annie Lennox, o cantor e compositor Elton John e o maestro Simon Rattle, os dois últimos agraciados com o título de "sir" pela família real britânica.

É possível estudar a vida inteira na escola, que oferece um curso para crianças e até o doutorado. O prédio, que fica no centro de Londres, próximo ao Regent's Park, guarda boa parte da memória da música britânica.

São mais de 160 mil itens no acervo. Entre os mais preciosos, estão manuscritos do inglês Henry Purcell e do alemão Georg Händel, dois compositores barrocos. Lá, também estão guardadas a biblioteca pessoal do alemão Otto Klemperer, um dos principais maestros do século 20, e o acervo deixado pelo lendário violinista americano Yehudi Menuhin.

Atualmente, a escola acolhe estudantes de 60 nacionalidades, realizando cerca de 500 concertos por ano.

Depois de concluir o mestrado em 2020, Fernandes, natural de Itanhaém, no litoral paulista, assinou um contrato que prevê cinco discos lançados pela Decca. Um deles já está no mercado e o transformou no queridinho do público internacional.

"Saudade", do ano passado, mescla os repertórios popular e erudito, com faixas como "Aquarela do Brasil" e "Ponta de Areia", de Milton Nascimento e Fernando Brant. O disco chegou ao primeiro lugar do ranking de música de concerto da Billboard e abriu portas para a realização de concertos mundo afora.

"São obras que já foram executadas por muitas pessoas, então eu decidi não ouvir essas gravações, em vez de pensar em algo inédito", ele conta. "Tentei mergulhar na partitura, fugindo dos hábitos e dos vícios de linguagem que tantas pessoas consagraram."

Neste ano, Fernandes se apresentará no Wigmore Hall, célebre casa londrina dedicada à música de câmara, e na Sala São Paulo, com seu amigo violoncelista Sheku Kaneh-Mason, uma celebridade do Reino Unido, que participou de "Saudade" tocando a cantilena das "Bachianas Brasileiras nº5", de Villa-Lobos.

Em 2020, a participação teve sentido contrário. Fernandes tocou "Scarborough Fair" no disco do amigo e, juntos, chegaram a 18 milhões de reproduções no Spotify. Fernandes conta que não pretende voltar a morar no Brasil. "Estando fora, a contribuição que posso dar ao meu país é infinitamente maior", ele afirma.

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