Descrição de chapéu
Televisão

'Vai na Fé' traz memória afetiva evangélica e pode atacar conservadorismo

Aposta da Globo precisa driblar falsa dicotomia entre mundo cristão e secular para romper estereótipo de mulher submissa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Campinas (SP)

Não é de hoje que a Globo busca se reposicionar em relação a evangélicos. No ano passado, a emissora fez um balanço de seu público e atestou que grande parte era formada por mulheres negras, periféricas e chefes de família, perfil que se assemelha ao de protestantes no Brasil.

A partir daí, o canal anunciou que aumentaria o volume de produções protagonizadas por personagens negros, como é o caso de "Vai na Fé", novela das sete que estreou no mês passado.

A trama gira em torno da família de Sol, vivida por Sheron Menezzes, mãe de Jenifer, interpretada por Bella Campos, e Duda, encarnada por Manu Estevão. Além das meninas, ela mora com Carlão, vivido por Che Moais, seu marido desempregado, e a mãe, Marlene, interpretada por Elisa Lucinda. Juntos, eles frequentam a igreja evangélica da comunidade, onde Sol faz parte do coral.

Sheron Menezzes, como Sol, na novela 'Vai na Fé', da Globo - João Miguel Júnior/Globo

Ela sustenta a família vendendo quentinhas em sociedade com a amiga Bruna, encarnada por Carla Cristina Cardoso, mas o bico não rende o suficiente para as contas. Sob ameaça de ter a energia cortada e por causa da escassez de recursos, Sol aceita uma proposta para trabalhar como dançarina do cantor pop Lui Lorenzo, papel de José Loreto, relembrando seus tempos de adolescência no baile funk, longe da igreja.

As cenas nos cultos despertam a memória afetiva do telespectador evangélico ao revisitar hinos e canções clássicas do gospel, presentes nas mais diversas comunidades cristãs. É inevitável cantar junto com Sol e relembrar momentos da infância, em comunidade aos domingos ou em celebrações menores, durante a semana.

A preparação de Sheron Menezzes ganha brilho quando a atriz canta de forma afinada, mas sem parecer uma grande cantora. É assim nos encontros de fé.

Até mesmo o destaque para sua voz, que fica um tom acima dos colegas de coro, é um artifício comum nos cultos. Geralmente, um irmão ou outro é mais desafinado, o que não o faz menos importante. Então, o volume de seu microfone é reduzido para que a sonoridade final tenha equilíbrio. Em contrapartida, o mais afinado, escolhido como solista, tem o volume aumentado, como acontece com Sol.

Os sermões do pastor Miguel, vivido por Adriano Canider, têm sempre um tom de instrução, abstraindo ensinamentos de passagens bíblicas. Merece destaque o tom paternal dessa figura, que ora se confunde com o lugar de pai atribuído a Deus, ora se assemelha à paternidade humana, figura ausente na vida de Sol, que perdeu o pai.

É o pastor que acolhe a personagem em momentos de dificuldade, dá conselhos a ela e até puxa a orelha de outros membros quando eles se opõem e discriminam a protagonista por trabalhar no meio secular — associado ao pecado entre os evangélicos.

Na contramão do conservadorismo de seus pastoreados, Miguel encoraja Sol e a orienta a ser fiel aos seus princípios e a Deus, independentemente de onde estiver. Esse é o posicionamento que a protagonista assume ao longo da trama e ao qual recorre quando enfrenta críticas da comunidade e até de sua família, que não aceita sua escolha mesmo usufruindo dos benefícios.

Sua mãe teme que Sol volte "ao mundo de perdição" em que já esteve um dia, e o marido demonstra dúvidas com relação à sua real conversão, como é chamado o processo de mudança de vida quando se vai para a igreja. Duda, a caçula, assume o lado do pai e não concorda com a escolha da mãe.

Já Jenifer apoia Sol, mas esconde dos amigos de faculdade ser sua filha. Alinhada ao feminismo, a jovem defende que a mãe deve ser livre para fazer o que quiser, mas acredita que as músicas de Lui são machistas e contribuem para a objetificação da mulher, o que a faz sentir vergonha da mãe.

É constante na trama a sensação de desconfiança da integridade de Sol por parte da família e dos amigos. Já frente ao núcleo de trabalho, ela é vista como careta demais, sempre reclamando do tamanho da saia ou da sensualidade da coreografia, por exemplo.

Para completar, o chefe se apaixonou por ela e se sente desafiado pela dançarina. Sol é a única mulher que não aceitou ficar com o galanteador Lui Lorenzo. Talvez por isso, com alguma frequência vídeos e fotos aparentemente comprometedores surgem na internet questionando mais uma vez a fidelidade dela à família e a sua fé.

A trama tem dado indícios de que o passado de Sol no baile funk, onde era chamada de "Princesinha do Baile", está mais próximo do que ela espera e virá a tona. Caso a protagonista se renda à tentação, a novela trairá o público que tenta cativar, reafirmando preconceitos contra evangélicos em um momento político em que o grupo já é estigmatizado pela associação de alguns líderes ao bolsonarismo.

Por outro lado, se Sol passar a trama toda se equilibrando em corda bamba para se provar aos seus e "ao mundo", não passará de uma personagem sem graça e infeliz. "Onde estaria Deus, que a permitiu ficar só?"

O que se constrói até o momento é uma terceira opção. Passado e presente se encontrarão para romper o conservadorismo e o estereótipo de que há um único modelo de mulher cristã, a submissa. Sol, então, se destacaria em sua carreira e enfrentaria os obstáculos sem trair a si mesma e muito menos trair sua fé, se mostrando uma mulher negra forte, empoderada e, por que não, evangélica. A ver.

Paola Ferreira Rosa
Paola Ferreira Rosa

Repórter de Seminários, Especiais e Treinamento. Formada em jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora, participou do primeiro programa de treinamento da Folha voltado para profissionais negros.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.