Andrea Beltrão diz que quer fazer filme de 'Tapas e Beijos' ao relançar 'Antígona'

Para atriz, Creonte, o tirano da peça, é muito mais interessante do que Trump e Bolsonaro, que ela considera estúpidos

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Rio de Janeiro

Em um prólogo criado para sua tradução de "Antígona" —a história da filha de Édipo que se opõe à lei de Tebas para enterrar o irmão, confrontando o rei Creonte—, Millôr Fernandes lamentava que a peça de Sófocles ainda fosse encenada mais de 2.000 anos depois.

Não por qualquer reserva artística ao texto, mas por ele ainda dizer algo à condição humana. Sua expectativa era que um dia deixasse de ser representado e se tornasse apenas um livro na estante.

"Ele concluía da seguinte forma: ‘Quem sabe um dia? Hoje não. Amanhã também não. Mas um dia, quem sabe’", cita-o, após uma tarde de ensaio, Andrea Beltrão, na área externa do Teatro Poeira, que fundou e mantém com a atriz Marieta Severo.

"Acho que ‘Antígona’ fala muito. Muito mesmo. Tudo que é dito ali são reflexões, provocações para as quais não tenho resposta e nem sei quem poderá ter. Espero que ainda seja emocionante de ouvir."

Andrea Beltrão, em 'Antígona' - Nana Moraes/Divulgação

A primeira montagem do monólogo protagonizado por Andrea e dirigido por Amir Haddad foi em 2016. Nos Estados Unidos, Trump ascendia, enquanto no Brasil Dilma caía. A segunda entrou em cartaz em maio de 2019. Recém-empossado, Bolsonaro confrontava a classe artística, e Andrea retomava o espetáculo, numa temporada que teve grande sucesso de público. Para a atriz, no entanto, a realidade foi pior do que a ficção.

"Creonte é um ser político muito mais interessante do que Trump e esse ex-presidente. Ele está todo embasado nas leis. É outro patamar de chefe de Estado. Ele tem razão, Antígona tem razão, e os dois são irredutíveis na argumentação", diz. "Penteu [rei de Tebas, que se opôs ao culto de Baco e está presente na 'As Bacantes'] parece mais com essa gente aí. Histérico, ignorante, estúpido, reacionário."

Veio a pandemia de Covid. Com o fechamento do Poeira e do Poeirinha, seu caçula, as mortes se avolumando, o luto que não se completava com a possibilidade de as pessoas enterrarem seus mortos, Andrea diz ter sentido necessidade de voltar ao texto.

Acompanhada do marido, o diretor Maurício Farias, o filho José, uma pequena equipe e todos os protocolos sanitários, transformou sua versão da peça em filme gravado no Poeira vazio e exibido no Festival do Rio em dezembro de 2021.

"Esse assunto de enterrar os mortos virou o assunto. Muita gente não teve o direito de se despedir. A diferença era que o elemento fatalista era uma doença, não um decreto real. Esse lugar miserável e trágico de não se despedir, não fazer o luto, não encerrar aquela vida, é terrível."

No final daquele ano, a atriz bombava como a modelo Rebeca, um dos destaques da novela "Um Lugar ao Sol", de Lícia Manzo. Em crise com a chegada dos 50, a personagem se envolvia com um garoto de 20 e poucos anos, interpretado por Gabriel Leone. "Ele é um grande ator. Um dos maiores. Foi um barato contracenar com ele."

Pouco afeita às redes sociais, Andrea era informada por pessoas próximas, como a autora da novela, sobre a repercussão. É também o que está acontecendo agora com uma de suas interpretações mais populares, a Sueli de "Tapas e Beijos".

Entre dilemas amorosos e financeiros junto de sua companheira Fátima, vivida por Fernanda Torres, a personagem tornou-se uma espécie de portadora do zeitgeist, isto é, do espírito do tempo brasileiro. "Vi três episódios seguidos no Viva. Como eu ri. Como a gente tinha cara de pau. Como a gente era maluco. Era muito bom."

Andrea conta que chegou a se ventilar uma nova leva de episódios, mas o assunto não foi adiante. "Gostaria de fazer um filme. Tenho uma torcida para que isso aconteça."

"Antígona" é o segundo espetáculo seguido da atriz desde a reabertura do Poeira, em janeiro do ano passado. Em junho, estreou "O Espectador", uma adaptação de "O Espectador Condenado à Morte", do dramaturgo romeno Matèi Visniec, junto das atrizes Marieta Severo, Renata Sorrah e Ana Baird. "Foi para reabrir o teatro. A gente conseguiu fazer uma adaptação bem louca e radical. A gente queria trazer o espectador de volta para o Poeira."

A sinergia das atrizes mantinha o pique, a atenção e a interação da plateia numa montagem que poderia ser considerada difícil, por dialogar com a construção e desconstrução da linguagem teatral. Foi um sucesso de público, com temporada estendida até fevereiro deste ano. "A gente queria uma coisa estranha. A peça está guardada como repertório", diz Andrea.

O teatro chega à maioridade em junho após ter passado por seu período mais difícil. Até 2019, o espaço contava com patrocínio que ajudava na sua manutenção. Embora o último —o da Petrobras— fosse para atividades culturais, Andrea e Marieta conseguiam cobrir parte dos custos operacionais.

Desde então, o espaço vem sendo mantido apenas pelas atrizes e pela receita da bilheteria. No período da pandemia, fechado, foi bancado apenas pelas fundadoras, que mantiveram os nove funcionários. "A gente investe desde que o teatro abriu. Não tem um centavo de Lei Rouanet na compra nem na reforma. É um investimento pessoal."

A atriz diz esperar tempos melhores, com as novas diretrizes nos Ministérios da Saúde e Direitos Humanos e em pastas relacionadas aos direitos da mulher. Ela diz ver como necessárias revisões nas leis de incentivo, de modo a abarcar as transformações no país e a produção em âmbito nacional. "A gente vai viver um tempo diferente. Estou muito animada. A cultura vai respirar melhor."

Antígona

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