Entenda como pianista russo Rachmaninov é disputado pelo nacionalismo de Putin

Compositor romântico que se inspirava na musicalidade do povo e na Igreja Ortodoxa deixou o país em 1917 e nunca retornou

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Trancoso (BA) 

Do Kremlin, Vladimir Putin planeja as comemorações dos 150 anos de Serguei Rachmaninov. Em janeiro de 2020, o presidente russo assinara um decreto instituindo um comitê para elaborar os concertos de aniversário do compositor.

O músico russo Sergei Rachmaninov - Reprodução

Não havia vírus ou guerra, e o nome de um dos maiores pianistas da história seria muitas vezes lembrado por Moscou, que tentava defender a cultura russa do cancelamento ocidental.

"A apropriação política da música desse compositor é impossível, porque sua obra é um patrimônio da humanidade, mesmo tendo inspiração no folclore nacionalista", diz Olga Kopylova, pianista nascida na antiga União Soviética, atual Uzbequistão, que integra a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.

Nesta temporada, a Osesp executa, com a interpretação do solista britânico Stephen Hough, os quatro concertos para piano do compositor, além do poema sinfônico "A Ilha dos Mortos".

Rachmaninov nasceu em Semionov, noroeste da Rússia. De família nobre, seus pais eram músicos amadores e donos de terras. Ele teve as primeiras aulas de piano com a mãe e, depois, ingressou no Conservatório de Moscou.

Ele se inspirou na musicalidade do povo, sobretudo nos cânticos da igreja ortodoxa, para a construção de melodias derramadas. Transfigurando obras vocais para a música sinfônica, Rachmaninov criou temas muito cantáveis, gerando identificação na plateia.

Na juventude, foi incentivado a compor por Tchaikóvski, um ídolo seu. Aos 18 anos, estreou o "Concerto para Piano nº 1". Em 1897, entrou em depressão, com o fracasso de sua primeira sinfonia. Voltaria aos holofotes com o "Concerto para Piano nº 2", um dos mais famosos da história.

Agora reverenciado pelo poder, Rachmaninov chegou a ter sua música banida da União Soviética. Em 1917, fugiu da Revolução Russa, deixando mulher e filhos para trás. Passou a morar nos Estados Unidos, onde morreu em 1943. No total, deixou três sinfonias, três óperas e, sobretudo, quatro concertos para piano. Sua obra data do romantismo tardio e descende da escola nacionalista russa.

A mais valiosa homenagem custa agora US$ 0,026. Em 2023, o Banco Central da Rússia pôs em circulação uma moeda de dois rublos com o desenho do rosto de Rachmaninov.

Desde 1992, o Kremlin tenta transportar seus restos mortais do cemitério Kensico, em Nova York, para a terra natal do compositor. A intenção foi reavivada, em 2015, pelo ex-ministro da Cultura da Rússia, Vladimir Medinsky, que acusou os americanos de "privatizar vergonhosamente" o túmulo do pianista. Na época, os descendentes de Rachmaninov se mostraram contrários à proposta do governo russo. Putin briga com a física da música, desejando ater o som às fronteiras de seu país.

No Brasil, a Orquestra Sinfônica da Bahia, a Osba, abriu a temporada de reverências ao gênio russo, numa das noites do Festival Música em Trancoso, que se estendeu entre os dias 14 a 18 de março. A orquestra executou a "Rapsódia Sobre um Tema de Paganini", de 1934, com o solista Leonardo Hilsdorf ao piano, e o "Vocalise", de 1912.

"Olha, elas nem são tão grandes assim", disse o pianista Leonardo Hilsdorf, dando a ver as suas mãos. Ele fazia referência à condição genética de Rachmaninov, que tinha mãos gigantes. Ele era capaz de tocar um intervalo de 13ª no teclado, construindo acordes infernais para a maioria dos pianistas da atualidade.

"Rachmaninov tinha uma noção absoluta de estrutura musical e antevia a arquitetura inteira das peças", afirma Hilsdorf. "Isso não vale só para a sua obra, cada peça tocada por ele é uma catedral única." Para a posteridade, o pianista russo deixou gravações de obras suas e de outros compositores, como Chopin e Schumann.

Ao tempo presente, os registros de Rachmaninov reacendem o debate, se as peças devem ou não ser executadas tal como nas gravações do autor. "Antes de estar na partitura, a música é som, não sei exatamente quais são os limites da interpretação nos dias atuais", diz Hilsdorf.

Embora pressuponha liberdade formal, a "Rapsódia" de Rachmaninov é um trabalho de esteio racionalista. Na introdução, é apresentado o tema do "Capricho nº 24", composto em 1807 pelo violinista italiano Nicolo Paganini. Em seguida, o piano inicia um jogo de esconde-esconde com a melodia de Paganini em 24 variações do tema inicial.

Entre elas, se destaca a "Variação nº 18", que funciona como a imagem invertida da sequência "lá, dó, si, lá, mi", do "Capricho nº 24". A "Rapsódia" tem estrutura dramática, e a "Variação nº 18" é o clímax da narrativa. De extremado lirismo, a melodia foi definida pelo próprio Rachmaninov como o "encontro dos amantes", numa carta escrita ao coreógrafo russo Michel Fokine, que desejava criar um balé para a composição.

Kopylova, a instrumentista da Osesp, define o piano de Rachmaninov num tripé, formado por virtuosismo, riqueza melódica e harmonização, a gramática da linguagem do artista russo.

Já em suas composições, há um músico erudito, que se dispõe a se comunicar com grandes plateias. "É próprio do romantismo traduzir o folclore e exercitar todas as possibilidades melódicas", diz Carlos Prazeres, maestro da Osba.

Na visão de Putin, seria conveniente, desse modo, ter a obra de Rachmaninov como trilha sonora política. Putin tenta transformar a doçura da música eslava em arma de seu nacionalismo pan-eslavo. Afinal, a música de Rachmaninov é um marshmallow com açúcar, diz Prazeres.

O jornalista viajou a convite da organização do festival.

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