Festival de Cannes desafia Putin com Tchaikóvski gay num casamento de fachada

'Tchaikovsky's Wife' tem direção de desafeto do presidente russo, Kirill Serebrennikov

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Cannes (França)

Poucas horas após a aparição surpresa do presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, na cerimônia de abertura do Festival de Cannes, o evento francês decidiu alfinetar Vladimir Putin de novo. Dessa vez, de forma mais cinematográfica, em sua seleção oficial de filmes.

Promessa para chacoalhar o evento, "Tchaikovsky’s Wife", ou a mulher de Tchaikóvski, foi exibido nesta quarta-feira, segundo dia de programação. A expectativa vinha da incerteza sobre como um filme russo sobre a mulher de um dos maiores artistas do país retrataria sua suposta homossexualidade. E foi com sutileza que o diretor Kirill Serebrennikov mexeu nesse vespeiro.

cena de filme
Cena do filme 'Tchaikovsky's Wife', ou a mulher de Tchaikóvski, dirigido por Kirill Serebrennikov e exibido no Festival de Cannes de 2022 - Divulgação

Não que o cineasta tenha deixado de abordar o assunto —ele impregna cada canto do longa. O fato é que não foi preciso apelar para grandes discursos politizados, verborragia ou violência para deixar claro o ponto de "Tchaikovsky’s Wife". O maior compositor de um país que institucionalizou a homofobia era, inegavelmente, gay. Que problema para Putin.

Na trama que compete pela Palma de Ouro, acompanhamos Antonina Miliukova, uma jovem aspirante a pianista completamente obcecada pela música de Tchaikóvski. Depois de muita insistência, ele aceita se casar com ela –não por amor, mas para fazer uma cena, como dizem os coadjuvantes, e pôr a mão em sua herança.

Totalmente iludida, Miliukova tenta a qualquer custo fazer com que o compositor a ame, embora a desconexão entre eles fique clara já no casamento, numa cena perspicaz e cuidadosamente montada. Primeiro, a longa vela cerimonial que Tchaikóvski segura ereta em sua frente se apaga –"não se preocupe, isso acontece com todo mundo", diz o padre. Depois, ele tem dificuldade para introduzir seu dedo na aliança.

Acompanhamos, a partir daí, como Miliukova se recusa a acreditar que o marido pode não a amar –ou ao menos consumar o casamento. A bebida com frequência entra em seu caminho, enquanto os amigos do compositor de "O Lago dos Cisnes" dão todos os indícios de que ele está mais interessado nos homens.

É num balé, aliás, que "Tchaikovsky’s Wife" encontra sua cena mais catártica. Enquanto dança, a protagonista é desnorteada por corpos masculinos completamente nus, que a perseguem, se embaralham e jogam em sua cara elementos da simbologia queer. A coreografia homoerótica representa sua descida ao inferno, regida por falos que balançam incansavelmente.

Fora uma cena ou outra que se permite fugir da cartilha contida dos filmes de época, "Tchaikovsky’s Wife" é bem sóbrio, como se para refletir o estado de espírito de sua protagonista. O longa começa com um funeral, já antecipando que as quase duas horas e meia seguintes serão de luto.

Alyona Mikhailova, Odin Lund Biro, o diretor Kirill Serebrennikov e Filipp Avdeev no tapete vermelho de Cannes, antes da exibição do filme 'Tchaikovsky's Wife' - Piroschka van De Wouw/Reuters

A paleta de cores escura e monocromática acompanha a derrocada de Miliukova, que deixa de usar vermelhos intensos a mando do marido, enquanto ouve dos boêmios ao redor que "tudo é permitido aos gênios". Até mesmo a homossexualidade, na Rússia do século 19, ao que parece.

Vindo do teatro, Kirill Serebrennikov conquistou liberdade semelhante nos últimos anos. Este é, afinal, o quarto filme que exibe em Cannes, depois de "A Febre de Petrov", no ano passado, "Verão", há quatro anos, e "O Estudante", que em 2016 rendeu a ele um prêmio paralelo.

Notório desafeto de Putin, o cineasta enfrentou, na última meia década, um processo criminal e uma prisão domiciliar, que quase o impediram de estar neste Festival de Cannes. A Justiça russa o acusava de ter desviado recursos públicos destinados a um centro cultural. O caso foi arquivado e ele foi considerado inocente há menos de dois meses.

"A declaração política que podemos fazer aqui está ligada à arte. Num filme que mostra quão vulnerável a vida pode ser, quão importante é salvar qualquer vida que seja, fica claro que a arte é, por natureza, contra qualquer guerra", disse ele no tapete vermelho, ao ser questionado sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia.

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