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Novo álbum de Adriana Calcanhotto é maduro, mas peca pela repetição

'Errante', o 13º disco da cantora, faz ensaio gentil da experiência humana e alcança som compacto e coeso

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São Paulo

Errante

  • Quando Disponível nas plataformas digitais na sexta-feira (31)
  • Autor Adriana Calcanhotto
  • Gravadora BMG

O deslocamento da prosódia nos versos iniciais de "Prova dos Nove", faixa com que Adriana Calcanhotto abre "Errante", seu 13º álbum, carregam em si um incômodo que percorrerá, de algum modo, todo o disco.

A cantora e compositora Adriana Calcanhotto em cartaz de divulgação de 'Errante', seu novo disco
A cantora e compositora Adriana Calcanhotto em cartaz de divulgação de 'Errante', seu novo disco - Leo Aversa

De "Tenho o Corpo Italiano" segue-se "O Nascimento no Brasil", o que obriga mudar o ritmo da melodia e quebra as pernas desse "funk entre aspas", pontuado desde o início por um ótimo sax barítono.

O canto silábico de Adriana oscila espontaneamente, como se estivéssemos em um ensaio ao vivo. De fato, a produção de "Errante" procura manter-se no registro de uma despretensiosa banda que apenas toca junto, sem embarcar na adrenalina do show nem nas minúcias tecnológicas do estúdio.

"E em tudo o que faço sou não mais do que impostora", verso que resume a canção, tem também esse estranho "não mais", que confunde um pouco o sentido. O tom imposto por essa "nowhere woman" —"sem forma"—, como se define em "Lovely", faixa que é cantada em inglês, afeta também a música, já que o funk vai progressivamente flertando com bailes mais antigos, numa espécie de gafieira intrusa.

O jogo entre erro e errância proposto por Adriana passa pelo samba de roda "Larga Tudo", sobre o amor fugaz que deixa a vida levar, mas atinge versão composicional madura —no equilíbrio entre texto, melodia e arranjo— em "Quem te Disse" ("que o amor vê diferenças?"). A dramaticidade inicial se resolve na segunda parte centrada no salto melódico de sexta, solução presente em várias composições de Adriana.

Um som compacto, coeso, cheio de variações nas repetições estruturado por Alberto Continentino no baixo e piano, Davi Moraes nas guitarras e violões, e Domenico Lancellotti,na bateria e percussão, sustenta com categoria "Levou para o Samba a Minha Fantasia" ("de ser feliz um dia"). O fim da relação se explica em uma imagem expressa em poucas palavras. "Saiu, foi pro ensaio, voltou de cabelo molhado."

As faixas de "Errante" são curtas, diretas, sem repetições excessivas, tendo como ponto mais forte as letras cheias de referências, como de hábito na obra da autora.

Mas a invariável simplicidade de recursos musicais também corre o risco de se esgotar, como na tríade de canções "Era Isso o Amor", "Jamais Admitirei" e "Reticências". Contudo, isso só ocorre quando elas são tomadas em si mesmas, autonomamente. No contexto do álbum, fluem como parte de um ensaio humano e gentil, de carne e osso, sem saudades nem pesares dos tempos da virtualidade imposta. "Errante" pede para ser escutado do início ao fim.

Uma energia extra ressurge no xote "Pra lhe Dizer", com o piano sutil, distante, comentando a decisão de "mudar de você", de "deixar a minha solidão sozinha e caminhar". A bossa nova "Horário de Verão" reintroduz os sopros, com destaque para a flauta em sol.

O tema da ativação do corpo e do tempo como centralidade existencial –em oposição ao espaço móvel, cigano e provisório da caminhante– subjaz no trabalho desde o início, encontrando ponto culminante em "Nômade", a última faixa. "Nômade é quando a casa é o corpo", canta Adriana em referência à famosa estrutura "não arte" de Lygia Clark, "A Casa é o Corpo", de 1968.

Na canção, o ser do nômade é identificado com o que puder ser carregado consigo "amanhã cedo". Com o corpo, claro, "que é onde te recebo, e é o que te entrego". Não há apegos: as tralhas justapostas são genéricas, padronizadas —"de vez em quando tenho no bolso a chave do quarto do hotel passado".

No fim, algo sobra soando sem voz, entre trompete com surdina, trombone e sax. Poderia ser o finalzinho de uma música de Miles Davis ou Charles Mingus.

Adriana Calcanhotto parece cantar sem certeza, o que matiza bastante a aposta oswaldiana na "alegria como prova dos nove" da faixa inicial. "Errante" parece pertencer a um tempo em que nem tudo precisava ser certinho e previsível na música popular brasileira. Este tempo pode ser hoje.

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