Descrição de chapéu

'O Avesso da Pele' adapta Jeferson Tenório para o teatro de forma brilhante

Peça do Coletivo Ocutá traz musicalidade ao texto do autor, vencedor do Jabuti, e é um gesto de resistência ao racismo

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O Avesso da Pele

  • Quando Até 2 de abril; qui. a sáb, às 20h; dom., às 18h
  • Onde Sesc Paulista - Av. Paulista, 119
  • Preço R$ 30, esgotado
  • Elenco Alexandre Ammano, Bruno Rocha e Marcos Oli
  • Direção Beatriz Barros

"O Avesso da Pele" é um espetáculo excepcional. Não apenas porque adapta para o teatro o livro também excepcional de Jeferson Tenório, vencedor do prêmio Jabuti em 2021, mas, sobretudo, porque faz com que as linhas da literatura saltem do papel e ganhem vida no palco.

Já no início o grupo deixa evidente que o material literário é o ponto de partida, e não o ponto de chegada da peça. Dito de outro modo, o grupo de artistas negros não parece almejar apenas ser fiel à narrativa do romance, mas sim fazer dela o motor de propulsão do seu teatro.

Cena da peça 'O Avesso da Pele'
Cena da peça 'O Avesso da Pele' - Divulgação

Ao entrarmos no espaço, chama atenção uma montanha enorme de livros que ocupa todo o palco. Quando o espetáculo começa, é dali que emergem os quatro atores. Eles saem de dentro dos livros. Das palavras escritas, surgem os corpos, os gestos, os sons, isto é, a carne do verbo.

Não por acaso, a dança ocupa papel central na sintaxe do espetáculo. É verdade que a música é presença que se faz notar em todo o romance de Tenório, e algumas das canções marcantes para a narrativa do livro aparecem também na peça, como a linda "Imagens", de Jards Macalé.

Porém, o grupo insere uma nova camada de musicalidade, o funk, que trás consigo toda uma explosão de danças, gestualidade e movimentos.

Não é só um detalhe. A alegria provocativa e insubmissa que emana dos ritmos do funk e de suas danças contrasta com o relato melancólico que organiza o romance.

Sem deixar de falar da fratura íntima causada pelo racismo —talvez o coração da obra de Jeferson Tenório— a versão teatral de "O Avesso da Pele" é também um gesto coletivo de resistência, a encarnação de um tipo alegre e urgente de revide social.

Em síntese, ler o romance e depois ver a peça, ou vice-versa, torna-se uma experiência complementar. Um expande o outro. Vale a pena.

Talvez o momento mais decisivo da narrativa no livro seja quando Henrique dá a melhor aula de sua vida, em um colégio público da periferia de Porto Alegre, sobre "Crime e Castigo" de Dostoiévski. Após décadas em um ofício cheio de frustrações, o professor encontra um instante de sentido para o que faz.

Este momento culminante, que será também trágico, na vida do professor, acontece não porque ele consegue "ensinar" a beleza de um clássico da literatura mundial, mas porque, de repente, Henrique diminui a distância entre ele, um professor negro, cheio de feridas íntimas e cicatrizes, e os seus alunos pobres e periféricos.

Em um insight, ele enxerga um ponto de conexão entre o romance russo e o cotidiano explosivo que envolve a sala de aula e também suas dores mais profundas.

Nesse momento, o professor deixa de querer aproximar os alunos do clássico e faz o contrário, faz com que o romance russo desça de seu pedestal cultural e se encontre com o cotidiano daqueles jovens. Assim, quando São Petersburgo se parece com um subúrbio violento de Porto Alegre, a obra parece reconquistar a vida que teve um dia.

No espetáculo, o que é narrado no livro torna-se presente no palco. A aula é mesmo realizada em cena. Todo o espaço cênico se transforma em uma ampla sala do colégio. Passamos a ver aquele momento vivo de aprendizagem não apenas pela perspectiva do professor.

Assistimos a aula irradiar nos corpos dos jovens, impregnar a cena e criar um espaço livre de aprendizagem coletiva. Os jovens atores do recém-criado Coletivo Ocutá representam, em cena, as personagens do romance, mas também são os meninos e meninas daquela sala de aula, com todo seu potencial de crítica, invenção artística e raiva que o racismo e a desigualdade sabotam todos os dias no Brasil.

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