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'Pandora' é livro kafkiano em que bichos sofrem com a razão humana

Livro de Ana Paula Pacheco se aproxima do leitor através do humor e da brutalidade tão brasileira

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Tiago Ferro

Escritor, crítico literário e autor de 'O Seu Terrível Abraço' e 'O Pai da Menina Morta', vencedor do Prêmio Jabuti 2019 (ambos pela editora Todavia)

Pandora

  • Preço R$ 64,90 (136 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Ana Paula Pacheco
  • Editora Fósforo

Gregor Samsa certo dia acordou metamorfoseado num inseto monstruoso. No entanto, a narrativa de Kafka não nos leva a nenhum tipo de fábula. O sofrimento do bicho asqueroso fechado em seu quarto acontece na mesma realidade que a nossa.

Se em momento algum somos informados a respeito das molas históricas que possam ter causado a metamorfose, há muito cálculo ali. Principalmente ligado ao mundo do trabalho (com seus constrangimentos e interesses inconfessáveis), o que situa a narrativa num momento específico da história contemporânea.

O romance "Pandora", de Ana Paula Pacheco, parece fazer parte desse mesmo universo literário. Em pouco mais de cem páginas, conhecemos três relações da narradora Ana, professora de letras em universidade pública, todas elas durante a pandemia: com um pangolim, com uma jovem residente em uma ocupação no centro de São Paulo e finalmente com um morcego gigante.

mulher de cabelo preto cacheado sentada na cadeira
A professora Ana Paula Pacheco, que estreia no romance com 'Pandora' - Pablo Saborino/Divulgação

A conexão entre narradora e autora não vai além do nome e da profissão, e qualquer tentativa de leitura pela chave da autoficção é furada. No entanto, Ana Paula sabe que um nome não é apenas um nome, e ao chamar a narradora pelo mesmo que o seu, busca a verossimilhança em ambiente difícil. E liberta a linguagem para incorporar sem esquematismos ou artificialidade o pensamento crítico materialista, apontando assim a necessária tomada de posição para o reconhecimento do horror.

Diferentemente do ambiente kafkiano, nos sentimos em casa, ou quase, no universo de "Pandora". Uma hipótese para esse estranhamento de ponta-cabeça é o uso preciso e recorrente de expressões populares ("ora bolas", "pendurou as chuteiras" etc.), uma informalidade muito nossa, que aliás anda de mãos dadas com todo tipo de brutalidade. Basta pensar na linguagem do último presidente da república: "chega de mimimi", "tá okey?!". Um achado e tanto do livro.

Outra estratégia de aproximação do leitor ao mundo nada familiar do livro é o humor. A paródia desestabilizadora do ambiente acadêmico, através da inserção do programa para o curso de letras enviado por Ana ao chefe do departamento, prova que a aproximação entre narradora e autora é funcional.

Há dois caminhos óbvios de leitura: embarcar no clichê de que a própria realidade durante a pandemia se tornou irreconhecível, e assim o que seria absurdo no romance passa a ser familiar; e que o livro funcionaria como epitáfio da tão debatida falência da razão moderna (ao que tudo indica sempre renegociada).

"Pandora" se torna mais assustador e interessante na mão contrária: trata-se da vitória total e irrestrita da razão moderna. O romance rompe com o que essa mesma razão mandara separar: humanos e o resto.

Não para jogar homens e mulheres de volta ao seu lugar, ao lado de insetos e morcegos, tão imperfeitos e mortais quanto os demais seres vivos, mas para sondar a vida num planeta finalmente dominado por uma única espécie.

Bichos são atravessados pela consciência avariada dos humanos, sofrem com a autoimagem, sentem-se angustiados, precisam pagar contas e decidir sobre operações plásticas; convivem com humanos, discutem a relação, agridem, fazem sexo, fogem. Um universo monstruoso que provoca um riso nervoso e indeciso do início ao fim da leitura.

Esse estranho apogeu da razão coloca problema de difícil solução, deixando algumas saídas recentes sugeridas pela antropologia, e também qualquer teleologia iluminista (socialismo incluso), em maus lençóis.

A nota específica da barbárie brasileira e de suas franquias também dá as caras: brutal desigualdade e barreiras de classe controladas por um necroestado. "Pandora" não aponta para qualquer solução, mas cristaliza o presente escancarado pela pandemia numa imagem forte (finalmente universal, como sonhavam os primeiros iluministas): um mundo que não se reconhece mais em seus próprios desígnios e caminha a passos largos para a autodestruição.

O livro é construído por trechos curtos, com encadeamento por vezes frágil, mas eficiente. A trama não chega a um final, e se a vida de Ana não vai a parte alguma, o romance sim, e sem ela.

O último trecho é uma nota distanciada sobre um político búlgaro real, o Batman dos Bálcãs, envolvido em escândalos de corrupção. Uma aterrissagem forçada na realidade para quem insiste em se refugiar no fantástico, ou na própria literatura.

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