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Filme põe Jair Rodrigues na primeira prateleira dos intérpretes da MPB

Documentário linear traça um bom panorama do cantor, visto como apolítico, mas que militava nas entrelinhas de seus discos

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Lucas Nobile

Jair Rodrigues – Deixa que Digam

  • Quando Em cartaz nos cinemas
  • Classificação 10 anos
  • Produção Brasil, 2019
  • Direção Rubens Rewald

De todos os depoimentos das 23 pessoas entrevistadas em "Jair Rodrigues – Deixa que Digam", documentário sobre o cantor que chega nesta quinta-feira às salas de cinema, o que melhor sintetiza o artista e o entendimento de sua obra em seu próprio país é concedido pelo músico e pesquisador Salloma Salomão.

"Se nós fôssemos uma sociedade civilizada, o Jair teria cursos na ECA [a Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo] sobre a obra dele, seus discos seriam sistematizados, seus arranjos seriam padronizados e sua vocalidade e corporalidade seriam estudadas como modelo de performer", diz Salomão.

Cena do documentário 'Jair Rodrigues: Deixa que Digam', de Rubens Rewald
Cena do documentário 'Jair Rodrigues: Deixa que Digam', de Rubens Rewald - Divulgação

Com imagens inéditas de acervo pessoal ou de emissoras de televisão, registros de shows e de gravações em estúdios entrecortadas por falas de pessoas que conviveram intimamente com o artista, a trajetória de Jair Rodrigues é contada de maneira eficiente ao longo de uma hora e 40 minutos.

Do nascimento em fevereiro de 1939 em Igarapava, no interior de São Paulo, no meio de um canavial ("meu cordão umbilical foi cortado num facão"), passando pela criação por sua mãe, pelo primeiro ofício como alfaiate, pela dupla Jair e Jairo —formada com seu irmão, com quem cantava músicas sertanejas tradicionais—, pela cancha adquirida por apresentações em boates, pela formação musical vinda da rádio-vitrola em que ouvia ídolos como Francisco Alves, Orlando Silva e Elizeth Cardoso, pela ida para a capital de São Paulo —enfim, está tudo ali, de forma linear, no documentário dirigido por Rubens Rewald.

Antes disso, sem rodeios e com o impacto necessário, logo na primeira cena o filme já diz a que veio, justificando seu título, extraído da canção de maior sucesso de toda a carreira de Jair Rodrigues. Num clipe com diferentes versões e sonoridades, do funk americano ao samba falado, Rodrigues interpreta os versos de "Deixa Isso pra Lá", de Alberto Paz e Edson Menezes, com o marcante gestual das mãos em movimentos para frente e para trás, tidos como libidinosos, ora com as palmas viradas para baixo, ora para cima.

Estouro nacional lançado no segundo disco da carreira do cantor, a música abriu todas as portas do estrelato para Jair Rodrigues no ano de 1964 e nunca mais o abandonou até a sua morte, em 2014. Eles se tornaram tão indissociáveis a ponto de o intérprete resumir tal ligação com a seguinte frase —"por causa desta música é que eu existo".

O mesmo sucesso de "Deixa Isso pra Lá" se repetiu nos anos seguintes, ainda na década de 1960, com a série de discos "Dois na Bossa" e com o programa "O Fino da Bossa", ambos protagonizados por Rodrigues e Elis Regina.

Numa sequência ascendente, logo depois do êxito no rádio, na TV e no mercado de discos, veio a consagração na chamada era dos festivais, quando em 1966 Rodrigues defendeu a canção "Disparada". Em "clima de Copa do Mundo", com o país dividido entre a composição de Geraldo Vandré e Théo de Barros (a preferida do público) e "A Banda" (a predileta do júri), de Chico Buarque, a solução foi o empate com as duas escolhidas como vencedoras do segundo Festival de Música Popular Brasileira da TV Record.

Segundo depoimento do produtor Solano Ribeiro, Vandré teria se oposto à decisão de a canção ser interpretada por Jair Rodrigues, dizendo "você está louco?". "Jair é sambista, vai estragar a minha música." O compositor se mostrou enganado, e o resto, como se sabe, é história. No documentário, Théo de Barros, coautor de "Disparada", defende Rodrigues, afirmando que ele "assimilou bem o sentido político" daquela moda de viola.

No filme também se discute uma percepção equivocada de que Jair Rodrigues era apolítico. Embora ele mesmo chegue a dizer no documentário que não ia a manifestações durante o período da ditadura, a contundência de seu recado —conscientemente politizada, sobretudo ao exaltar a cultura negra— se dava por meio de seus discos. Como, por exemplo, ao gravar num mesmo álbum, em 1971, "Pisa nesse Chão com Força", de Geovana, e "Festa para um Rei Negro", samba-enredo de Zuzuca do Salgueiro.

"Jairzão não foi um artista que se mostrou militante, mas que nas entrelinhas militava", diz o rapper Rappin Hood em depoimento no filme.

Seja pela opção de uma linguagem tradicional, seja pelas limitações de tempo inerentes a todo documentário, "Jair Rodrigues - Deixa que Digam" passa de maneira panorâmica pela extensa discografia do artista.

Ainda assim, dá conta de pôr Jair Rodrigues, com justiça, na primeira prateleira de intérpretes da música brasileira. Caso raro de cantor que aliava um carisma inato com afinação e divisão impecáveis e total domínio técnico interpretativo dos textos e dos subtextos encerrados nas canções.

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