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Peça 'Boca a Boca' traz acidez da poesia de Gregório de Matos ao som de rock'n'roll

Em monólogo no Teatro Oficina, ator Ricardo Bittencourt recita poemas de escritor barroco apelidado Boca de Inferno

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São Paulo

"Eu sou aquele que os passados anos/ cantei na minha lira maldizente/ torpezas do Brasil, vícios e enganos." Ao proferir esses versos como se fossem uma declaração de culpa, o ator Ricardo Bittencourt desce a rampa do Teatro Oficina, símbolo do bairro do Bexiga, no centro de São Paulo, imponente e orgulhoso —como se imagina que era Gregório de Matos.

Com a parte superior do rosto pintada em vermelho, parece usar uma máscara para representar aquele que tinha "sangue nos olhos" e que, ao escrever o que via, ficou conhecido como o Boca do Inferno.

O ator Ricardo Bittencourt em cena da peça 'Boca a Boca', sobre Gregório de Mattos
O ator Ricardo Bittencourt em cena da peça 'Boca a Boca', sobre Gregório de Mattos - Jennifer Glass/Divulgação

Bittencourt interpreta o escritor barroco em "Boca a Boca: Um Solo para Gregório", monólogo que apresenta 40 poemas de Gregório de Matos em formato de pocket show. Dividida pelas temáticas mais abordadas pelo poeta —costumes, sexo, religião e crítica ao governo— o espetáculo busca apresentar, de forma dinâmica, a atualidade do poeta, segundo o roteirista João Sanches.

Considerado o primeiro poeta brasileiro, Gregório de Matos ficou conhecido pelos versos ácidos, recheados de críticas e deboches à sociedade do Brasil colônia. Tipicamente barroco, seu texto é composto por rimas e antíteses, além de carregar contradições entre religiosidade e pecado.

Não por acaso, seus versos satíricos e por vezes sexualmente explícitos o levaram a ser acusado perante a inquisição em 1685 e exilado. Sua obra completa, transmitida pelos séculos através da oralidade a alguns manuscritos —fato que inspira o título "Boca a Boca"—, foi publicada apenas no século passado.

Bittencourt desencarna o personagem em alguns momentos para se tornar narrador e contextualizar o publico sobre a vida do poeta. "Chegou nesse teatro, muda tudo", explica ele.

Depois de encenada em Salvador, a peça veio a São Paulo há cinco anos, onde passou pelo Sesc Pinheiros e por escolas e bibliotecas na periferia da cidade.

Se nas apresentações passadas a relação com o público era frontal, desta vez o ator recita a poesia em 360 graus —como exige a arquitetura do Teatro Oficina. A iluminação da peça incorpora as mudanças de tom do poeta —as cores quentes predominam nos momentos de sátira e cólera, enquanto as poesias líricas e religiosas, símbolo do espírito contraditório da arte barroca, são cobertas pela penumbra e tons de azul, caso dos versos "o mal, que fora encubro, ou que desminto/ dentro no coração é que sustento,/ com que, para penar é sentimento,/ para não se entender, é labirinto".

Os solos de guitarra, ora agressivos, outrora sutis, acompanham o poeta durante o espetáculo, musicando suas declamações e gestos, além de contagiar os espectadores com suas emoções —mesmo nos momentos de silêncio.

A trilha ao vivo de Adriano Salhab ajuda a aproximar a obra de Gregório aos tempos atuais, indo de MPB nacional até Nirvana –mas é composta especialmente pelo rock psicodélico da década de 1960, ideal para interpretar um cara ácido como Gregório de Matos, afirma Salhab. "Gregório é rock'n' roll puro, pois ele tem essa atitude roqueira da contestação", diz Sanches, o roteirista.

Apesar de também ser um fidalgo, pessoas mais abastadas e descendentes da nobreza, o poeta tentava se distanciar das características dessa classe —como fica marcado nos momentos de raiva, em que o ator rasga um livro ou tira a sua capa, peça que compunha a vestimenta da época.

Bittencourt atribui a conexão imediata com o público nas apresentações anteriores à contemporaneidade perturbadora do poeta barroco. "A essência das mazelas do Brasil continua a mesma", diz. É o que se nota, por exemplo, nos versos direcionados a Antônio de Sousa Meneses, então administrador colonial. "Quem sobe ao alto lugar, que não merece,/ homem sobe, asno vai, burro parece,/ que o subir é desgraça muitas vezes./ A fortunilha, autora de entremezes/ transpõe em burro o herói que indigno cresce."

O fato dos versos satíricos e críticos de Gregório serem sempre direcionados a alguém também facilita o estabelecimento de um diálogo mais direto com público. Apesar da linguagem barroca, quase nada fica subentendido. Os efeitos visuais e sonoros servem para enfatizar, como define Bittencourt, o grande protagonista da peça, o texto de Gregório de Matos.

Boca a Boca: um Solo para Gregório

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