Ainda desconhecido do público brasileiro, Víktor Eroféiev é referência na cultura russa contemporânea. Suas publicações críticas sobre literatura e filosofia andam ao lado de seu trabalho como romancista.
Mas não é apenas por sua produção artística que ele é relevante. Sua própria vida daria um livro —na verdade, deu, e a obra chega agora ao Brasil depois de já ter sido traduzida em 65 países, segundo o próprio autor em entrevista feita em São Paulo, onde esteve para lecionar um curso na Universidade de São Paulo e lançar "O Bom Stálin".
Seria injusto reduzir "O Bom Stálin" a uma autobiografia. A epígrafe já desamarra os leitores de qualquer documento histórico —"todas as personagens deste livro são inventadas, incluindo as pessoas reais e o próprio autor". Sobre isso, Eroféiev se limita a dizer que apenas pela ficção se pode chegar mais perto da realidade, e aí se vislumbra uma chave de leitura para a ironia do título do romance.
Originalmente publicado em 2004, "O Bom Stálin" chega ao Brasil em um momento de crescente interesse por autores e autoras da Rússia que fogem do básico Tolstói-Dostoiévski. E a distância entre o lançamento original e a versão brasileira joga novas luzes à narrativa.
"O cerne do enredo é sobre o verdadeiro significado do que é o totalitarismo, o que é falta de liberdade", diz o autor. "E estamos diante de um novo Stálin, Putin é um novo Stálin. Quem deseja entender o que se passa hoje, em meu país, tem neste livro uma porta de entrada. Meu pai sempre me disse que eu estava à frente do meu tempo, e ele sempre soube melhor sobre mim do que eu mesmo."
O pai, ou melhor, o personagem Vladímir Eroféiev, é uma figura central do romance. Foi diplomata russo em Paris e depois funcionário do alto escalão soviético, trabalhando como intérprete de Josef Stálin.
Com as benesses de estar ao lado do governo, a família Eroféiev prosperava, até que Víktor decide lançar com amigos o almanaque "Metrópol", uma coletânea de autores que não eram bem-vistos pelo regime. Na época, Vladímir foi demitido e banido da política soviética. A questão com o pai perseguiu o autor, e "O Bom Stálin" é dedicado a ele.
Questões entre pais e filhos são relevantes nas grandes obras russas. "Honestamente, queria que meu livro se chamasse 'Pais e Filhos', mas infelizmente Turguêniev já fez isso. O livro dele poderia ser o 'pais e filhos número dois', o meu é o número um."
Ele se diverte pensando na própria relevância. "Turguêniev cria um personagem, Bazárov, que acredita que o ser humano é bom, mas as condições são ruins. Eu acredito que se as condições são ruins, o ser humano não pode ser bom, afinal, somos nós que as produzimos. Há um embate de visões aqui, e quero mostrar que não é por azar que líderes estranhos chegam ao poder. O povo russo está de novo nessa situação porque Putin é filho das condições humanas".
E haveria alguma forma de combater Putin? Para Erofréiev, o presidente pode controlar tudo na Rússia, mas não há como tomar controle do tempo. "Um ponto de mudança vai chegar, a Ucrânia será livre e independente e a Rússia poderá ressurgir orientada por valores democráticos. Não será amanhã. Mas um dia virá um milagre, como foi Gorbatchov, ou uma revolução."
Por não saber qual deles esperar, Eroféiev e sua família hoje moram no exílio, entre Kassel, na Alemanha, e Berlim. "A Alemanha entende os russos, não me sinto tão imigrante lá", diz, lembrando que a tradição literária russa é repleta de escritores em exílio.
"É muito importante ter duas culturas", afirma o autor, para quem "ter uma única cultura pode tornar o autor muito nacionalista, mas quando se tem duas culturas, elas se espelham e é possível ver melhor o mundo".
Ao fim da entrevista, Eroféiev comenta que, antes de profetas, os escritores russos são pessoas que acreditam livremente, mesmo que censurados. "O talento é sempre livre."
Ele diz preferir não voltar ao seu país natal, para se manter livre, e ouve uma pergunta sobre temer violência ou perseguição estatal. "Não fui declarado um inimigo, fui até publicado por lá. Mas, com a guerra, é bizarro estar na Rússia, me sinto desconectado de meu país. A situação muda todo dia e acho que ainda não chegamos ao fundo do poço. Nunca se sabe."
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