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Ler Nabokov falando de livros é como ver craque falando sobre futebol

Com saborosa ironia e sofisticação, autor de 'Lolita' se enleva com Flaubert e diz que Dostoiévski é medíocre

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Um dos prazeres de ler a coluna de Tostão neste jornal é ver os camisas dez da atualidade medidos pela régua de alguém que foi, no mínimo, do mesmo tamanho deles.

Pois os textos de Vladímir Nabokov sobre literatura propiciam uma satisfação análoga. Craques do quilate de Flaubert, Proust, Joyce, Tolstói e Tchekhov passando pelo crivo de um astro da sua estatura.

Goleiro dentro das quatro linhas, Nabokov, a exemplo de Di Stefano, Puskás e Altafini, engrandeceu duas seleções nacionais com seu talento. Foi o nome mais flamejante da primeira onda de autores russos evadidos da Revolução de 1917, com obras-primas como “A Defesa Lújin” e “O Dom”, até abraçar a língua inglesa e nela escrever seu romance de maior sucesso, “Lolita”.

nabokov
O escritor russo naturalizado americano Vladímir Nabókov em Gstaad, na Suíça, em 1970. - Reprodução

Antes do conforto financeiro propiciado pelo êxito deste último, Nabokov teve de ganhar a vida, nos Estados Unidos, lecionando na Universidade Cornell e no Wellesley College —e as anotações dessas aulas, editadas e organizadas por Fredson Bowers, constituem a base de “Lições de Literatura” e “Lições de Literatura Russa”, que faziam parte do catálogo do selo Três Estrelas e estão sendo relançados agora no Brasil pela Fósforo.

O trabalho de Bowers foi notável, conferindo coerência e fluidez a notas que poderiam fazer o leitor sofrer por seu caráter fragmentário, e o resultado é um texto que se deixa ler com muito prazer —digno de um dos maiores prosadores do século 20 e preservando a saborosa ironia e sofisticação intelectual.

No primeiro volume, Nabokov se concentra em sete obras-primas do cânone ocidental, como “Mansfield Park”, de Jane Austen, “A Casa Soturna”, de Charles Dickens, e “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust.

Já o segundo é uma introdução à literatura russa, dedicada a meia dúzia de escritores. Como se trata de um público-alvo não russo, Nabokov, além de abordar obras, fala também de aspectos biográficos e estilísticos mais gerais de cada escritor.

Púchkin, sua grande paixão, de cujo romance “Ievguêni Oniéguin” ele fez uma ambiciosa e controversa tradução, infelizmente fica de fora.

Entram estudos bastante aprofundados de Gógol –que ele depois transformaria em livro– e Tolstói –com um alentado ensaio sobre “Anna Kariênina”–, uma afetuosa análise de Tchekhov, uma leitura matizada de Turguêniev e diatribes contra Dostoiévski –“não é um grande escritor; ao contrário, é bastante medíocre”– e Górki. Freud, Rilke, Thomas Mann e o comunismo são outras vítimas das caneladas ferinas que ele se compraz em distribuir.

Como nas crônicas futebolísticas de Nelson Rodrigues, a literatura em Nabokov é um tema por demais visceral e apaixonante para que ele possa se conceder luxos como imparcialidade ou objetividade.

Se a pedante meticulosidade de lepidopterologista o leva a calcular o número de palavras que James Joyce escreve em “Ulysses”, a tentar definir em que inseto se transforma Gregor Samsa em “A Metamorfose”, de Kafka —para ele, não é uma barata, e sim um besouro— ou a desenhar diagramas para elucidar “O Médico e o Monstro”, de Robert Louis Stevenson, ele se enleva com a arte de Flaubert em “Madame Bovary” –“sua prosa faz o que a arte supostamente devia fazer”– e não se impede de cravar Tolstói como “maior prosador russo”.

Resta lembrar ainda que, quando um escritor fala sobre literatura, está se manifestando também a respeito de sua própria produção.

Dessa forma, ao afirmar que “a obra de arte é sempre a criação de um novo mundo” e que “grandes romances são grandes contos de fadas”, Nabokov não só está defendendo a autonomia da arte e descartando que ela deva ser lida como imitação da “realidade”, como também oferecendo a bula para a leitura do universo altamente estilizado e deliberadamente artificial que ele criou em livros como “Ada ou Ardor” e “Fogo Pálido”.

Nabokov ainda distribui críticas acerbas aos tradutores —e não deixa de ser irônico que a versão de sua própria obra para o português padeça de pequenos problemas nessa área, como as mudanças de sexo de Ivan Panaiev, um dos editores de “O Contemporâneo”, e de Korniei, criado do romance “Anna Kariênina”.

Detalhes menores que em nada tiram o brilho da obra, mas que certamente teriam aborrecido seu fastidioso autor.

Lições de Literatura

  • Preço R$ 99,90 (472 págs.)
  • Autoria Vladímir Nabókov
  • Editora Fósforo
  • Tradução Jorio Dauster

Lições de Literatura Russa

  • Preço R$ 89,90 (400 págs.)
  • Autoria Vladimir Nabokov
  • Editora Fósforo
  • Tradução Jorio Dauster
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