Cannes mostra delírios de uma geração TikTok perdida, no filme 'Wild Diamond'

'The Girl with the Needle' também inaugurou o festival, com outro retrato de uma jovem castigada pelo machismo

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Cannes (França)

Há três anos o TikTok é parceiro do Festival de Cannes. Patrocínios e uma competição de curtas foram gerados, mas a rede social não conseguiu conquistar uma fatia significativa da atenção destinada às mostras tradicionais. O mais perto que chegou do tapete vermelho do Grande Teatro Lumière, até agora, foi nesta quarta-feira (15).

Cena do filme "Wild Diamond", de Agathe Riedinger, que integra a competição oficial do Festival de Cannes de 2024
Cena do filme "Wild Diamond", de Agathe Riedinger, que integra a competição oficial do Festival de Cannes de 2024 - Divulgação

Não da maneira pretendida, porém. O TikTok é, de certa forma, um personagem de "Wild Diamond" –"Diamant Brut" ou "diamante bruto", no original–, filme da estreante Agathe Riedinger que compete pela Palma de Ouro e abriu as sessões da mostra principal de longas desta 77ª edição.

São várias as menções à plataforma chinesa ao longo do filme, com uma trilha sonora densa e incisiva que com frequência deixa escapar sons de videozinhos publicados nela. Sua protagonista, aos 19 anos, é naturalmente frequentadora assídua da rede, influenciada diariamente pelo que vê ali.

Acompanhamos Liane, interpretada pela ótima e desconhecida Malou Khebizi, uma jovem que vive com a mãe problemática, que a largou num orfanato quando criança, e com a irmã mais nova, com quem é superprotetora. Morando numa cidadezinha da França e sem muita perspectiva de futuro, seu grande sonho é ser influencer, ganhar produtos em troca de posts e entrar para um reality show chamado Miraculous Island.

É com uma ligação da produtora da atração fictícia que o filme abre, alimentando sua protagonista com um tantinho de esperança. Ficamos, pelas próximas duas horas, na expectativa para saber se ela vai ou não integrar o elenco de boys lixos e gostosonas do programa de pegação.

Não deixa de ser triste ver que os maiores sonhos de Liane se resumem a engolir sapo de celebridades com as quais, é alertada, precisará se envolver sexualmente e fechar parcerias com uma manicure da cidade. Do outro lado, temos Idir Azougli, que constrói uma casa para orgulhar o irmão e, quem sabe, atrair a protagonista para a vida estável que almeja.

"Wild Diamond" parece escolher um caminho nessa bifurcação. Há certo tom condescendente ao mostrar a vida de Liane, que soa como o retrato de uma juventude com sonhos perdidos em vídeos de 30 segundos. Ela chega a ir a um cirurgião plástico para testar silicones para as nádegas, depois de ver uma influenciadora recomendar o procedimento, apesar de já ter as curvas do corpo bem avantajadas.

Com suas microrroupas, a maquiagem pesada e as unhas enormes, cobertas por pedrinhas de brilhante falsas, Liane vai escancarando o machismo enraizado em todos, dos garotos de sua geração –que pensava-se estar salva desse mal– à conselheira do governo que tenta encontrar um emprego para ela.

Mas não. Ela quer participar de um reality show para mostrar seu eu real, diz a certa altura, enganando a si própria, mas não o público. O trabalho de olhar de Khebizi é digno de nota, capaz de transmitir todas as angústias e frustrações não verbalizadas de uma personagem na qual o roteiro se aprofunda pouco.

"Wild Diamond" provavelmente não será um destaque da seleção de Cannes deste ano, mas ajuda o festival a cumprir um papel importante –o de lançar para o mundo jovens talentos cheios de potencial. Tanto Khebizi quanto a diretora, Agathe Riedinger, são diamantes a serem lapidados, não há dúvida.

Cena do filme 'The Girl With The Needle', de Magnus von Horn
Cena do filme 'The Girl With The Needle', de Magnus von Horn - Divulgação

Numa primeira análise, pouca coisa liga este primeiro filme da mostra oficial ao segundo, apresentado também nesta quarta, "The Girl with the Needle", ou "a garota com a agulha". Um se empenha em colorir e encher de brilho os figurinos de sua protagonista, enquanto o outro a afunda na sobriedade do preto e branco de um filme de época, no pós-Primeira Guerra.

Conforme este segundo filme progride, porém, vai se costurando uma relação. A escolha por parear "Wild Diamond" e "The Girl with the Needle" é acertada, já que este também segue uma jovem –agora de 23 anos– desiludida e castigada por uma sociedade machista. Ambas também sonham em ascender socialmente, inconformadas com a realidade cruel imposta a elas.

Mas o que o filme de Riedinger tem de promissor, o do sueco Magnus von Horn tem de frustrante. O longa tenta transitar por diferentes gêneros, mas nunca de forma bem-sucedida. São várias histórias dentro de uma, deixando o espectador confuso com o que está vendo.

Inspirado em uma história real, acompanha Karoline, papel de Vic Carmen Sonne, uma jovem que trabalha numa fábrica têxtil e, sem notícias do marido enviado à guerra, acaba se envolvendo com o dono do local. Ela engravida, mas a futura sogra trata de enxotá-la, e ela se vê sozinha com um bebê.

Nisso, seu marido, com o rosto distorcido pela guerra, reaparece, e entra em cena também uma prestativa senhora que se propõe a ajudá-la, procurando uma família para acolher a criança. Com esses personagens afetados, misteriosos e, cada um à sua maneira, ameaçadores, Von Horn constrói habilmente um terror atmosférico, que infelizmente descamba para um melodrama vazio.

"The Girl with the Needle" se torna, assim, uma experiência arrastada e cansativa, que não deve chamar a atenção do júri presidido por Greta Gerwig, que por sua vez pode ver familiaridade entre "Wild Diamond" e a sua própria filmografia feminina e feminista.

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