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'Sombras de um Crime' faz releitura do noir com maneirismo pictórico

Philip Marlowe, criado por Raymond Chandler, é detetive que é constantemente aprisionado ou vítima de espancamentos

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Sombras de um Crime

  • Onde Em cartaz nos cinemas
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Liam Neeson, Diane Kruger, Jessica Lange
  • Produção Irlanda, Espanha, França, 2022
  • Direção Neil Jordan

Como Sam Spade, detetive criado por Dashiell Hammett, Philip Marlowe, invenção de Raymond Chandler, costuma se arriscar bastante em suas investigações, sendo constantemente aprisionado ou vítima de espancamentos. Ser detetive, para ele, envolve risco físico.

Marlowe surgiu em "O Sono Eterno", primeiro romance de Chandler, publicado em 1939. O livro seria adaptado ao cinema por Howard Hawks, em 1946, num filme aqui chamado de "À Beira do Abismo", com Humphrey Bogart e Lauren Bacall.

Liam Neeson em cena do filme 'Sombras de um Crime', dirigido por Neil Jordan
Liam Neeson em cena do filme 'Sombras de um Crime', dirigido por Neil Jordan - Patrick Redmond/Divulgação

Em 2014, o escritor irlandês John Banville, sob o pseudônimo Benjamin Black, lança "A Loura de Olhos Negros", romance protagonizado por Philip Marlowe, com autorização e incentivo dos herdeiros de Chandler.

Esse romance é agora adaptado por Neil Jordan, que aproveita e faz uma nova releitura do filme noir. O longa se chama "Marlowe", no original, "Sombras de um Crime", no Brasil. É protagonizado por Liam Neeson e ambientado em 1939, na Califórnia.

Na trama, menos rocambolesca que a de um noir típico, Marlowe é contratado por Clare Cavendish, socialite vivida por Diane Kruger, para encontrar o amante misteriosamente desaparecido e acaba se envolvendo com um estúdio de Hollywood e contrabando de drogas.

Que não se espere um veículo de ação nos moldes da série "Busca Implacável". Embora o detetive não se esquivasse do perigo, os domínios do cinema noir são muito mais cerebrais e enigmáticos, fazendo com que a ação desta adaptação seja mais contida do que nos veículos usuais para Neeson.

Em 1973, Robert Altman inaugura, com "O Perigoso Adeus", um ciclo moderno de releituras do noir. O filme mostra o caminho para todas as releituras de noir desde então. Curiosamente, de 1973 até hoje há menos diferenças estéticas no cinema do que de 1973 para 1946, quando surgiu o filme de Hawks.

Essa constatação nos serve para lembrar que o cinema mudou muito mais dos anos 1940 aos anos 1970 do que destes para os anos 2020. A maior diferença das releituras de antes com as de agora está na frontalidade das questões sexuais.

Nos chamados neo-noirs dos anos 1970 e 1980, o erotismo é um dos principais elementos. Muitas vezes o sufocante preto e branco do ciclo clássico dá lugar a um calor insuportável, que transformava atores e atrizes em poças de suor. O exemplo máximo dessa estratégia foi "Corpos Ardentes", 1981, de Lawrence Kasdan.

Hoje, erotismo existe quase exclusivamente em filmes que exploram esse nicho, como o recente "Águas Profundas", de Adrian Lyne, ou a série de longas "Cinquenta Tons...". Fora disso, costuma imperar o puritanismo no cinema contemporâneo atual.

Para Neil Jordan, o que sobra? Um maneirismo pictórico que provoca uma explosão de cores por vezes constrangedora, como numa cena que envolve um aquário, toda em azul e laranja, ou no exagero entediante dos tons de sépia habitualmente usados para representar o passado. Eventualmente, contudo, o tratamento visual de seu filme é muito bem-sucedido.

Cineasta irlandês que despontou nos anos 1980 com longas talentosos como "A Companhia dos Lobos", de 1984, e "Mona Lisa", de 1986, Jordan foi cooptado por Hollywood em "Com Fantasmas Não se Brinca", seu quarto longa para cinema, de 1988.

A partir daí, tem alternado projetos mais ambiciosos com refilmagens ou releituras de gênero. Seu ecletismo permite tanto a realização de grandes filmes como "Fim de Caso", de 1999, quanto uma bobagem como "Valente", de 2007.

Podemos entender, por seus melhores filmes, que sua capacidade é alta. E é por isso que "Sombras de um Crime", filmado principalmente na Espanha, decepciona um pouco.

Nas primeiras imagens, vemos um cuidado de composição do espaço pouco comum no cinema contemporâneo. O problema é que esse cuidado nem sempre se repete. Pelo contrário, por vezes o que domina é a imagem que parece pouco pensada. O "mirar a câmera e filmar do jeito que estiver" tão em voga no cinema atual.

Felizmente, Jordan dá um pouco de seu melhor em algumas cenas em que Neeson contracena com Kruger. Há um diálogo curioso em que Marlowe menciona um encontro com um irlandês que citou Marlowe. Clare pergunta se ele tem falas famosas para ser citado, ao que Marlowe informa que se referia ao antigo escritor Christopher Marlowe, contemporâneo de Shakespeare.

Outros dos melhores momentos do filme é quando Marlowe encontra a mãe de Clare, Dorothy Quincannon, interpretada brilhantemente - e estranhamente, o que convém ao universo noir - por Jessica Lange. É uma personagem forte, com passado intrigante, que coloca um tempero bem especial na trama.

Jordan traduz com alguma fidelidade o clima do filme noir tal como surgiu: o visual cheio de listras provocadas pela incidência da luz, situações em que ninguém presta e todos são corrompíveis, em que a dança dos poderosos ao redor do dinheiro provoca a capitulação de todos que não estão à altura de acompanhá-los ou enfrentá-los.

Como escreveu María Negroni, em "La Noche Tiene Mil Ojos", o noir é tido como "um gênero essencialmente apolítico, capaz de representar o modernismo em chave popular, mas incapaz de propor às massas uma visão ética do mundo".

Marlowe circula por Hollywood. Na trama, vemos a produção de um filme hollywoodiano de então, no qual aparece destacadamente, já perto do fim, a suástica nazista. Isso parece insinuar que a época atual, com o fortalecimento da extrema-direita no mundo, permite o tom desesperançoso que dominava o noir clássico. A releitura desse gênero tão rico, portanto, é de incrível pertinência.

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