Descrição de chapéu Festival de Cannes

Em Cannes, novo filme de Almodóvar foge de nudez explícita de caubóis gays

Curta-metragem dramático traz crueza das vozes de Pedro Pascal e Ethan Hawke, segundo o diretor espanhol

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Cannes

Só parecia haver um Pedro no Festival de Cannes, e ele não era exatamente Pedro Almodóvar. Isso segundo o batalhão de pessoas que se aglomeraram por mais de sete horas às portas do cinema onde aconteceria a exibição do curta "Strange Way of Life", ou "Extraña Forma de Vida ", releitura gay dos faroestes feita pelo cineasta espanhol. Mas o Pedro que boa parte da multidão queria ver era o ator Pedro Pascal, que protagoniza o filme.

A fila era tanta que houve bate boca e empurra-empurra, e dezenas de pessoas que tinham ingressos, incluindo jornalistas, acabaram ficando de fora da sessão única. Houve até quem implorasse na chuva por uma entrada, apelando para cartazes que chamavam o muso de "daddy" —uma forma entre o sexy e o carinhoso de se referir à cara de paizão do galã improvável.

Ethan Hawke e Pedro Pascal em cena de 'Strange Way of Life'
Ethan Hawke e Pedro Pascal em cena de 'Strange Way of Life' - Divulgação

O chileno da série "The Last of Us", que divide a internet entre os que o acham a beldade do ano e os que não veem nada de mais no sujeito, não deu as caras na mostra de cinema. Mas nas telas ganhou ares fashion na pele de um caubói que vive um namorico tórrido com o xerife interpretado por Ethan Hawke. É a segunda produção em língua inglesa do diretor de "Tudo Sobre Minha Mãe" após "The Human Voice", com Tilda Swinton, lançado em 2020.

E muito embora seja uma peça com pegada publicitária, coproduzida pela grife Saint Laurent, não nega o DNA de Almodóvar. Não por acaso, o diretor escolheu a voz de Caetano Veloso para cantar o fado "Estranha Forma de Vida", de Amália Rodrigues, que embala o começo do filme. É uma escolha coerente, que repete a parceria entre o cineasta espanhol e o cantor brasileiro, firmada em "Fale com Ela".

Afinal, a obra é um típico "almodrama" (para usar uma expressão cunhada pelo compositor baiano), mas da lavra dos almodramas masculinos, como "Má Educação", "A Lei do Desejo" e "Dor e Glória". Isso significa que o que está no centro da trama é uma análise psicológica da relação entre homens, mas sempre mediada pelo desejo, como reza a cartilha do diretor.

Em linhas gerais, a trama traz o embrutecido personagem de Hawke às voltas com o assassinato da cunhada. Quem topa à sua porta é o vaqueiro Silva, interpretado por Pascal, pai do principal suspeito pelo crime. O reencontro acende a atração adormecida entre os dois, é claro. Almodóvar chega a enquadrar a bunda despida do ator chileno, mas se esquiva da sexualidade explícita.

"Não quis mostrar nudez dos corpos, mas nudez das vozes, porque o que eles dizem é mais impactante", disse o cineasta em conversa com o público após a sessão em Cannes. "Meus filmes do começo da carreira têm muito sexo explícito, então cada vez mais busco mostrar o prazer de outro modo. Os olhares deles é que carregam a sensualidade."

Mas não só os olhares. Há espaço para beijos lascivos sob torrentes de vinho, umas apalpadas na virilha e até uma piada sobre dor nas costas pós-transa. Há, sobretudo, uma resposta à pergunta deixada lá atrás por "Brokeback Mountain", de Ang Lee: o que dois homens fariam juntos num rancho?

"Meu filme talvez seja o primeiro western em que os personagens arrumam a cama juntos", brincou o cineasta, que chegou a ser cortejado nos idos dos anos 2000 para dirigir o filme de Lee, arrancando risadas de um público que contou com a presença de Catherine Deneuve, Xavier Dolan e Rossy de Palma.

A citação a "Brokeback Mountain", obra pioneira sobre vaqueiros gays, pode até ser escancarada. Mas o cineasta espanhol faz um aceno maior à abordagem ambígua dos western spaghetti do italiano Sergio Leone —foi, inclusive, filmado na mesma Andaluzia que serviu de locação para o italiano nos anos 1960.

"Apesar de o faroeste ser um gênero totalmente masculino, o cinema nunca deu abertura ao desejo de dois homens. É incrível que estamos em 2023 e ainda não havia um filme assim", disse Almodóvar, que citou as diretoras Jane Campion ("O Ataque dos Cães"), Kelly Reichardt ("First Cow") e Chloé Zhao ("Domando o Destino") como renovadoras do estilo.

Não que Hollywood não tenha tentado, ainda que de forma cifrada, abordar o homoerotismo dos caubóis. Podemos pensar em "Rio Vermelho", clássico faroeste lançado por Howard Hawks no final dos anos 1940, sob a vigilância cerrada do Código Hays, uma espécie de polícia dos costumes que vetava nudez e sexualidade nas produções americanas.

Num clássico exemplo de subtexto gay, Hawks escalou o então jovem Montgomery Clift, galã que passou a vida no armário, para o papel de um vaqueiro. Logo no começo, seu personagem resolve medir forças com um rival, entre olhares marotos e elogios mútuos ao tamanho do revólver um do outro.

É com esse tipo de universo —queer, mas absolutamente masculino, viril— que o espanhol parece querer travar um diálogo.

Ladeado por quatro dos rapazes do elenco no filme, incluindo Manu Ríos, de "Elite", que exibia um decote profundo, Almodóvar não deixou de fazer piada. "Vocês podem ver aqui as beldades do filme. Mas garanto que eles são também bons atores."

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