Descrição de chapéu Filmes Festival de Cannes

Festival de Cannes traz ruína de família tunisiana com jogo de cena feminista

Filme 'Les Filles d'Olfa', ou as filhas de Olfa, de Kaouther Ben Hania, disputa a Palma de Ouro na mostra de cinema

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Cannes (França)

O universo feminino é central em "Les Filles d’Olfa", ou as filhas de Olfa, da tunisiana Kaouther Ben Hania, que disputa a Palma de Ouro no Festival de Cannes com um extenso jogo de cena de Olfa Hamrouni, mãe de quatro garotas, duas ainda morando com ela. As mais velhas "estão com os lobos", diz ela, na introdução do longa.

Para atender à expectativa criada pelo filme, não convém revelar quem são esses lobos e qual o destino das jovens —ainda que isso esteja na sinopse disponibilizada pelo festival—, mas estamos diante de um caso real que a diretora trata de retrabalhar na tela.

Cena do filme "Four Daughters", de Kaouther Ben Hania, que compete no Festival de Cannes de 2023
Cena do filme 'Les Filles d'Olfa', de Kaouther Ben Hania - Divulgação

A proposta é pôr Olfa e as duas meninas mais jovens em frente às câmeras para narrar e reencenar suas vidas não apenas para o espectador, mas para as atrizes Hind Sabri, que assume o papel da mãe, Ichrak Matar e Eya Chikhaoui, fazendo as vezes das filhas ausentes. Há ainda um ator homem, Majd Mastoura, que dá conta de interpretar todas as figuras masculinas, do pai delas a um policial.

Como em "O Homem que Vendeu sua Pele", seu longa-metragem anterior, Hania se baseia num caso real, mas não tem as intenções de remontar a íntegra da tragédia nem quer ser voz ativa nos rumos do trabalho.

A diretora prefere se tornar invisível para que, momento a momento, tanto Olfa como as filhas tenham a chance de narrar a decomposição do núcleo familiar. Há depoimentos sobre o marido brutamontes, o padrasto abusador, as pequenas rebeldias das filhas, as discordâncias, as descobertas sexuais e lembranças cotidianas, enquanto os episódios são arquitetados em cena entre um depoimento e outro.

Se a princípio podem despertar o interesse como mise en scène, aos poucos fica claro que todo o processo é um teatro terapêutico para que Olfa e as meninas se abram para as câmeras e revelem mais do que numa entrevista jornalística ou num documentário convencional.

Esse método injeta bastante sentimentalismo ao filme, ainda que, para a plateia ocidental, ver uma mãe tunisiana espancando sua filha por ter depilado as pernas não é o melhor caminho para desmontar estereótipos.

Elenco e diretora do filme 'Les Filles D'Olfa', no Festival de Cannes
Elenco e diretora do filme 'Les Filles D'Olfa', no Festival de Cannes - Patricia de Melo Moreira/AFP

Felizmente, Olfa, que veio para o festival e participou da coletiva de imprensa, não recuou ao ser questionada sobre a forma como criou suas meninas, calcada na herança da própria criação, nas tradições do islamismo, mesmo que não radical, e no medo da sexualidade. Ela, mesmo firme em alguns costumes, sabe ser feminista a seu jeito e não tem vergonha de soar careta ao discordar de ideias liberais.

Além de feminista e mulher, em primeiro lugar ela se coloca como mãe —não uma heroína, como também mostra Catherine Corsini em "Le Retour", também na disputa pela Palma de Ouro.

Para não revelar mais, basta dizer que a terapia ganha contornos sociológicos quando a narrativa se aproxima dos dias atuais e do contexto da revolução tunisiana em 2010. Se para o espectador tudo pode parecer distante num primeiro olhar, Hania sabe que ter seu filme projetado em Cannes ecoará o radicalismo que atingiu diversas partes do mundo, corroendo corações e mentes, nações e famílias.

O jornalista viajou a convite da Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo

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