Descrição de chapéu Festival de Cannes

Filme sobre Nelson Pereira dos Santos atiça o Brasil que não pode ver seu cinema

Em Cannes, longa sobre diretor de 'Rio 40 Graus' e 'Vidas Secas' ganha no valor histórico e cópias cristalinas dos clássicos

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Cannes (França)

Presente em mostras paralelas desta edição do Festival de Cannes, o Brasil apareceu na Cannes Classics celebrando um dos maiores nomes do cinema nacional, Nelson Pereira dos Santos. "Vida de Cinema" é bastante informativo sobre o "pai do cinema novo", sobretudo para o público internacional que acompanhou a sessão na sala Bazin, ainda que muitas das entrevistas que costuram o filme (em sua imensa maioria, depoimentos do próprio Nelson) sejam mais valiosos para quem já o conhece.

Dirigido por Aída Marques e Ivelise Ferreira —companheira de Nelson por 30 anos, até sua morte, em 2018—, o longa segue a cartilha cronológica e dedica boa parte do tempo aos anos 1950 e 1960, décadas de suas obras mais célebres.

Cena de 'Vida de Cinema' sobre Nelson Pereira dos Santos
Cena de 'Vida de Cinema' sobre Nelson Pereira dos Santos - Divulgação

Vai desde o revolucionário "Rio 40 Graus", de 1955, o injustiçado "Rio Zona Norte", lançado dois anos depois e primeiro grande papel de Grande Otelo fora das chanchadas, sem ignorar o "nordestern" "Mandacaru Vermelho", que surgiu dos percalços da primeira produção de "Vidas Secas", sua obra-prima, de 1963.

A narrativa flui bem e dá atenção para o contexto histórico —há bastante destaque para a censura de "Rio 40 Graus" e como o confronto entre polícia e imprensa, liderada por Pompeu de Souza, do "Diário Carioca", levou o longa ao público— e anedotas das filmagens, como sobre como Nelson dirigiu as cenas da cachorra Baleia em "Vidas Secas".

O filme brilha de verdade quando dá a ver sua matéria histórica: trechos dos longas aparecem em cópias cristalinas para impactar quem não teve chance de conhecer os trabalhos na tela grande. A cena em que o personagem de Grande Otelo em "Rio Zona Norte", inspirado em Zé Keti, apresenta o samba "Malvadeza Durão" a Angela Maria é comovente, enquanto Jece Valadão como o Boca de Ouro arranca gargalhadas pela violência do texto, nesta que é a primeira grande adaptação cinematográfica de outro Nelson, o Rodrigues.

O mesmo vale para o segundo capítulo do filme, centrado no período que vai de "El Justicero", de 1967, até "Quem É Beta?", de 1973.

A edição brilha ao fazer uma sequência criativa espelhando similaridades entre "Fome de Amor", altamente influenciado pela vanguarda americana, "Azyllo Muito Louco", baseado em "O Alienista" de Machado de Assis e seu primeiro longa colorido, e o clássico "Como Era Gostoso Meu Francês" —esses filmados em Paraty, numa espécie de exílio da capital carioca, numa estética quase tropicalista.

Essa parte reforça a impressão de que o conjunto se sairia melhor se confiasse mais nas imagens de Nelson do que em suas palavras.

Algumas sequências são prolixas, com declarações repetitivas, outras vagas, algumas fora de lugar no roteiro. As melhores declarações costumam sair de entrevistas raras e não das mais acessíveis na internet, como respostas no Roda Viva ou em depoimentos para o Museu da Imagem do Som.

O filme segue até os vinte minutos finais dando boa atenção para cada uma das obras, sem deixar de lado "Na Estrada da Vida", sua investida num gênero popular, com jeito de chanchada caipira, estrelada por Milionário e José Rico. As cenas da comédia aqueceram o coração dos brasileiros que já sentem saudade do país e deixaram os franceses a ver navios.

Mas as diretoras também dedicam minutos de rasgação de seda explícita para o festival, que acolheu Nelson com "Vidas Secas" e projetou "Memórias do Cárcere", de 1985, internacionalmente. Mas após falar da segunda adaptação de Graciliano Ramos, protagonizada por Carlos Vereza, o documentário dá uma guinada estranha e salta num repente para 2012, com "A Música Segundo Tom Jobim" e "A Luz do Tom".

Além de ficar solto na narrativa, sem explicar a relação de Nelson com o maestro e com outros nomes da MPB, a pressa para terminar o longa apaga filmes menores como "Jubiabá", de 1986, segunda adaptação de Jorge Amado após "Tenda dos Milagres", o curioso "A Terceira Margem do Rio", baseado no conto de Guimarães Rosa, bem como o excelente curta "Meu Compadre, Zé Ketti" e "Brasília 18%", uma resposta a "Rio 40 Graus".

Some ainda seu ambicioso projeto sobre "Casa-Grande e Senzala", que virou uma minissérie, ou a menção a "Cinema de Lágrimas", com Raul Cortez. Alguns fotogramas desses trabalhos aparecem no minuto final, numa montagem embaralhada ao som de Tim Rescala.

Em vez de uma chave de ouro, porém, o final do documentário expõe uma tragédia atual —onde estão esses filmes? Em quantos festivais serão exibidos (dentro do país)? Chegarão algum dia ao streaming? Estão preservados, é fato, alguns digitalizados em 4K. Não são questões restritas a apenas este cineasta.

O Brasil voltou ao circuito internacional, como saudou Thierry Fremaux no início da sessão. Mas ainda resta a crise que o próprio Nelson destacava: é uma luta cíclica, o cinema brasileiro é violentado, morre, mas ressuscita em ritmo de festejo. Falta, porém, que ele seja capaz de ver a si mesmo, nas telonas e telinhas.

O jornalista viajou a convite da Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo

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