Descrição de chapéu Cinema

'Tudo tem um antes e depois de Nelson Pereira dos Santos', escreve Walter Salles

Diretor de 'Central do Brasil' fala sobre o expoente do cinema novo, morto no último dia 21

Walter Salles

[RESUMO] Diretor de ‘Central do Brasil’ escreve sobre Nelson Pereira dos Santos. Afirma que ‘a representação, o tempo dos planos, a compreensão do quadro, tudo tem um antes e depois’ do cineasta que morreu no dia 21 de abril.

 

Imagine a literatura brasileira sem Guimarães Rosa ou Graciliano Ramos. Ambos deram nome ao que ainda não havia sido nomeado e voz ao que ainda estava emudecido. Da mesma forma, o cinema brasileiro moderno não existiria sem Nelson Pereira dos Santos.

Com "Rio, 40 Graus" (1955), "Rio, Zona Norte" (1957) e "Vidas Secas" (1963), é toda uma geografia humana até então excluída do cinema que ganha a tela.

Os primeiros filmes de Nelson irrigaram o mais importante movimento cinematográfico brasileiro, o cinema novo. Não era somente uma ideia de cinema que tomava corpo naquele momento, mas também a projeção de um país desejado —muito mais livre, justo, independente e democrático do que aquele em que vivemos hoje.

A partida de Nelson revela a distância abissal entre o país sonhado e o Brasil real.

O cineasta Nelson Pereira dos Santos, na Flip, em 2013
O cineasta Nelson Pereira dos Santos, na Flip, em 2013 - Danilo Verpa - 5.jul.13/Folhapress

Ele não era o pai fílmico de uma só geração, mas de várias. "O mestre dos mestres", como diz Eryk Rocha em seu documentário "Cinema Novo" (2016). Montador de "Barravento" (1962), de Glauber Rocha, roteirista de mão cheia, realizador, ator.

O cinema para Nelson era antes de tudo uma prática coletiva e uma forma de entender o que nos tornava únicos e originais. A representação, o tempo dos planos, a compreensão do quadro, tudo tem um antes e depois de Nelson.

Em seus filmes, diretores de fotografia como Luiz Carlos Barreto e José Medeiros reinterpretaram a luz brasileira. Não mais a luz balanceada dos estúdios da Vera Cruz, mas a que transmite pela primeira vez as condições de vida nos morros e no sertão. Não é coincidência que tantas transformações que norteiam o cinema brasileiro até hoje tenham acontecido em torno de Nelson.

Ao ser entrevistado por Eryk Rocha para o documentário sobre o cinema novo, Nelson procurou redimensionar a influência por ele exercida. Preferia dizer que tinha sido conquistado pela criatividade dos cinema-novistas. Imagino que, pelas mesmas razões, ele refutaria boa parte do texto acima. Em Nelson, modéstia, integridade e afetividade andavam de mãos dadas.

Buscando uma analogia no futebol, arrisco dizer que, assim como ao craque Nílton Santos, a Nelson não interessavam as firulas, o drible desnecessário, a embaixadinha diante do adversário. Em seus filmes, a busca é pelo essencial. Nenhuma palavra, nenhum gesto a mais.

Isso o aproximou de Graciliano Ramos, do qual foi o melhor intérprete no cinema, com as obras-primas que são "Vidas Secas" e "Memórias do Cárcere" (1984). Este último não é apenas uma contundente representação da ditadura do Estado Novo nos anos 30. É também, indiretamente, um dos retratos mais reveladores da ausência de democracia no Brasil nos anos de chumbo.

Literatura e cinema brasileiros raramente estiveram tão interligados. As adaptações de Jorge Amado ("Tenda dos Milagres", de 1977, e "Jubiabá", de 1986), Guimarães Rosa ("A Terceira Margem do Rio", de 1994) e Graciliano mostram o quanto a influência e o interesse pela literatura são centrais na obra de Nelson. Não por acaso, o projeto não filmado que ele acalentou durante anos era sobre o poeta e libertário Castro Alves —cuja cadeira o cineasta ocupou desde 2006 na Academia Brasileira de Letras.

Escrevo logo depois do velório de Nelson, na ABL. As lembranças, com sua partida, se acumulam desordenadamente. Lembro do privilégio que foi vê-lo trabalhando na série documental "Casa Grande e Senzala" (2001), ao mesmo tempo em que Coutinho, nosso outro grande mestre, desenvolvia "Babilônia 2000" (2001).

"A Música Segundo Tom Jobim", documentário que Nelson lançou em 2012, chegou ao público pouco depois de "As Canções" (2011), de Coutinho. É como se, por alguns momentos, vasos comunicantes unissem as obras de dois amigos próximos.

Lembro também de Nelson nos corredores da TV Manchete, onde fez alguns projetos no início dos anos 80, enquanto esperava para filmar "Memórias".

Ali, ele era apenas o "Nelson", que se divertia com as improvisações de um canal de televisão que engatinhava. Numa época em que televisão não era exatamente atraente, trabalhava sem prejulgamento.

Com a mesma liberdade, penso, que lhe permitiu fazer filmes tão populares quanto o excelente "O Amuleto de Ogum" (1974). Ou "Estrada da Vida" (1980), sobre Milionário e José Rico.

Da mesma forma, é difícil esquecer a conversa entre dois dos maiores realizadores da história do cinema latino-americano, Nelson Pereira e Tomás Gutiérrez Alea, na Havana de 1984. A admiração que um nutria pelo outro não se expressava em palavras, mas era palpável. A faixa comentada da versão brasileira do seminal "Memórias do Subdesenvolvimento" (1968), de Gutiérrez Alea, foi, aliás, feita por Nelson e Coutinho.

Dessa noite cubana, lembro ainda de outro traço marcante de Nelson, a curiosidade. Tudo lhe interessava: o cotidiano na ilha, os jovens cineastas que despontavam, a escola de cinema que se formava então em San Antonio de los Baños, os novos projetos de "Titón" (como os amigos chamavam Gutiérrez Alea).

A sua ausência é uma perda irreparável para o cinema brasileiro. Nelson parte, mas a dimensão da sua obra e a ética que a construiu ficam para sempre presentes. É um legado imenso e generoso, constitutivo do nosso passado e futuro. E, também, daquilo que poderemos ser, enquanto nação. 


Walter Salles, 62, é diretor de “Central do Brasil”, entre outros filmes, e sócio da Videofilmes, que coproduziu “Casa Grande e Senzala” e “A Música Segundo Tom Jobim”, realizados por Nelson Pereira dos Santos e produzidos pela sua Regina Filmes.

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