"Racionais MC’s: Entre o Gatilho e a Tempestade", antologia de artigos acadêmicos organizada pela socióloga Daniela Vieira e pela antropóloga Jaqueline Lima Santos, examina a obra do grupo por vários ângulos —como fenômeno estético, político e sociológico. Mas o resultado é irregular.
A iniciativa de construir uma ponte entre a academia e a rua, a partir de uma análise produzida com rigor e método, é louvável. Dá a dignidade intelectual devida aos pioneiros do rap nacional e a uma obra sólida que, sem exageros, pode ser lida como uma grande chave interpretativa não apenas do debate público racial brasileiro, mas igualmente do nosso caráter nacional.
O livro analisa o fenômeno Racionais a partir de muitos aspectos, mas não se detém nas fontes intelectuais do discurso, da ação política e do pensamento afro-orientado do grupo. A exceção é o artigo de Paulo César Ramos, que aponta a importância do debate da discriminação racial, feito no movimento negro por gente como Carlos Hasenbalg e Lélia Gonzalez.
Ainda no mesmo artigo, Ramos demonstra como a proximidade dos Racionais com o Geledés, o Instituto da Mulher Negra, durante os anos 1990, através do Projeto Rap, tornou acessível a eles o universo de produção acadêmica sobre temas como violência policial, desigualdade racial e sistema de justiça criminal.
É excelente também o artigo de Paula Costa Nunes de Carvalho sobre a abordagem da imprensa paulista aos Racionais, durante os anos 1990, no qual fica claro o desequilíbrio entre a cobertura de artistas de rap e de outros gêneros.
"Sobrevivendo no Inferno", disco mais importante do grupo, tem o que Bruno de Carvalho Rocha classifica de uma linguagem "mítico-poética e religiosa". É isso, e muito mais.
Em "Capítulo 4, Versículo 3", Mano Brown introduz um universo imagético que é muito rico, barroco e épico. Brown é Public Enemy e Jorge Ben Jor. Mas ele também é Cruz e Sousa e Lima Barreto.
"Entre o Gatilho e a Tempestade" acerta na contextualização da produção dos Racionais. Sobretudo quando demonstra as redes de sociabilidade e a criatividade afro-diaspórica que floresce em bailes blacks, rodas de samba e terreiros de candomblé, das quais o grupo é um subproduto.
Aqui e acolá, todavia, os autores recaem em uma análise redundante da obra. Além disso, abusam do jargão e de linguagem hermética, restrita à compreensão dos pares. O que dá a medida do tamanho dos Racionais é a capacidade discursiva, mas o livro a subtrai, não a amplifica.
Uma alternativa à linguagem árida de "Entre o Gatilho e a Tempestade" é o livro "Dilla Time: The Life and Afterlife of J Dilla", de Dan Charnas, lançado em 2022 nos Estados Unidos. É um híbrido de musicologia e história cultural de um dos produtores mais influentes da história do hip hop.
O texto de Charnas, professor da Universidade de Nova York, é escrito com o rigor analítico esperado, mas é claro e acessível. Não à toa, entrou na lista de best-sellers do jornal The New York Times.
"Entre o Gatilho e a Tempestade" é uma iniciativa intelectual e política importante. Os Racionais são o fenômeno cultural mais complexo e interessante do Brasil das últimas décadas. A despeito da intenção, não é um livro de alcance amplo, ao contrário da obra e trajetória do grupo.
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