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Rita Lee fala de morte sem cara de enterro em sua 'Outra Autobiografia'

Longe da autopiedade e perto do autodeboche, cantora narra tratamento de câncer com seu humor típico em livro

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A cantora Rita Lee

A cantora Rita Lee em fotografia que ilustra sua 'Outra Autobiografia' Guilherme Samora/Divulgação

Rio de Janeiro

"Outra Autobiografia" de Rita Lee é um livro que se lê sorrindo. Sim, a obra que chega nesta segunda às livrarias documenta de maneira crua e sincera, sem eufemismos, a descoberta do câncer que acabou levando-a à morte e toda a intimidade do processo do tratamento.

Em sua voz, porém, brotam imagens divertidamente provocativas, referências de Chapolin a Sartre, sabedoria sagaz como a dos versos de seus hits e reflexões serenas sobre a vida e seu fim —tudo passando longe da autopiedade ou mesmo da tristeza. Como ela escreve a certa altura, ao falar da morte: "Pra quê fazer tanta cara de enterro quando deveríamos tratar dela com humor?".

A cantora Rita Lee
Rita Lee desde o diagnóstico de câncer - @ritalee_oficial no Instagram

Como nas suas canções, o humor e a leveza não representam escapismo, tentativa de desviar do assunto. Pelo contrário, é uma forma de ir mais fundo nele. Neste caso, de dar conta da experiência extrema que ela atravessava ali. Extrema na transformação do corpo, que ela compara a de "uma galinha velha que nem bom caldo daria", e que atinge também seus cabelos, raspados: "(...) era uma delícia, pois um côté masculino, mais prático, vinha à tona".

Experiência extrema também pela consciência do amor dos que o cercavam. "(...) eu já estava me tornando uma pequena tirana: ‘Estou com sede’, e lá vinham todos trazendo suco e água; ‘Estou cansada’, e aparecia uma cadeira com travesseiros fofos e macios; ‘Estou com frio’, e uma manta macia embrulhava meus ombros".

E, claro, a experiência extrema de ter a sensação de estar se despedindo, algo que ela encara não com resignação, mas com um fascínio ávido pelo desconhecido que virá. "Posso me imaginar num jardim maravilhoso rodeada de bichos e dos que partiram da minha família antiga. Ou então vou me desmanchar num microátomo, ser parte do Todo e desvendar os mistérios que tanto questionei quando estava viva. Morte deve ser o grande gozo final da vida: aonde quer que eu vá, lá estarei eu."

O sorriso do leitor já é provocado no tom de autodeboche da primeira frase do livro, na apresentação: "Sempre achei que biografia fosse coisa de gente morta". Uma piscadela de Rita à la David Bowie, que lançou dias antes de sua morte a canção "Lazarus", referência ao personagem bíblico que é ressuscitado por Jesus.

A narrativa começa com Rita lembrando a descoberta do tumor. Na primeira referência que faz a ele, descreve a sensação como a de "um elefante deitado sobre o lado esquerdo do meu corpo". Pensou estar infartando. Entendeu como uma reação à primeira dose da vacina contra Covid, que ela tomara no dia anterior.

Quando tomou a segunda dose, nova reação, como uma bronquite. Foi à otorrino que a tratava há anos para ver o que era. Os exames mostraram um tumor de 20 centímetros no pulmão esquerdo.

Ficou internada. A combinação da medicação do hospital com o remédio tarja preta que contrabandeou na bolsa ("havia descolado na véspera com um farmacêutico chapa") potencializou as crises de pânico que descreve no livro ora recorrendo a "O Exorcista", ora a "Um Estranho no Ninho".

Rita não poupa o leitor dos detalhes que dão ideia do drama do tratamento. Mas faz isso à sua maneira. Refere-se às fraldas descartáveis como "la crème de la crème da humilhação". No banho que as enfermeiras lhe davam, diz que se sentia a personagem de "Carrie, a Estranha".

Amarrada na ambulância, se compara a Hannibal Lecter. Com 37 quilos e dificuldade de comer, lembra de uma cena em que o Pica-Pau bota um funil na boca de Zeca Urubu.

A desconfortável máscara usada nas sessões de radioterapia é batizada por ela carinhosamente como Leonor e, ao fim do tratamento, "adotada" e levada pra casa —a cantora acreditava que objetos têm alma, e conta que conversou muito com um velho iPhone antes de trocá-lo por um modelo mais novo, e mesmo assim continuou dormindo com ele na cabeceira de sua cama.

O olhar original de Rita, presente em seus versos, se mostra também na observação de detalhes prosaicos do cotidiano com os quais ela teve que aprender a lidar. Um exemplo é o fato de não poder fazer xixi no banho, para que sua pele não entrasse em contato com as toxinas liberadas pela urina por conta da quimio e imunoterapia. "E eu gostava muito de mijar em pé".

Ou a flatulência provocada pelo tratamento, algo "que ninguém comenta". "Para não ficar um climão, já me denuncio: ‘Fui eu, acabei de soltar um pum’."

Em meio ao drama e à graça que Rita imprime, há muita beleza no livro. Sobretudo na relação da cantora com sua família —formada pelos "humanos" e pelos animais de estimação. Ela conta que deixou que seu marido Roberto de Carvalho e seus filhos decidissem se ela faria o tratamento ou não.

"O amor dos boys Carvalho/Lee me fez optar por aceitar fazer o tratamento, porque, se fosse por mim, adeus mundo cruel na boa." Martelo batido, acatou a decisão lutando com todas as forças para vencer os tumores —o maior deles, na costela, ela chamava de Jair, "homenagem" ao então presidente do Brasil. Para marcar a decisão, escreveu na porta de um banheiro do hospital: "Foda-se, o que vier eu traço".

Rita considerou a possibilidade de não fazer o tratamento não apenas por sua relação tranquila com a morte. Havia também, ela conta, o trauma de ter visto o sofrimento da mãe, décadas antes, ao passar pela terapia contra um câncer. Mas fora a queda de cabelo, que a cantora resolveu raspando a cabeça, ela não sofreu com as reações comuns do processo.

Sobre a careca, há uma história saborosa e bastante representativa do que é Rita. Antes de começar a usar um turbante, perguntou a uma "enfermeira negra, alta e bonita, com uma megacabeleira trançada" se ela a ensinaria a colocar um turbante e se isso seria apropriação cultural. A resposta foi um riso seguido de um "ah, você pode!".

Em suas 192 páginas, o livro curto dá conta de uma existência enorme para o período de dois anos que cobre.

Passa pela dificuldade de Rita em parar de fumar (dois maços diários em média, três e meio durante a quarentena); o desejo de aprender o "quadradinho" de Anitta; a visita com o museu fechado à exposição feita em homenagem a ela; uma experiência extracorpórea, quando se viu "na presença de uma esfera flamejante multicolor"; a paranoia de ser assassinada pelas enfermeiras como num livro de Stephen King ("Melhor era ter sempre uma tesoura à mão").

Há ainda a "onda" provocada pela medicação carboplatina, aplicada às sextas-feiras em sua quimioterapia ("Agora a palavra ‘sextou’ tem outro significado pra mim"); a perda de Elza Soares e Gal Costa, com quem ela chegou a planejar a turnê LeeGal nunca realizada; o relato de um sonho no qual ela estava numa festa no Copacabana Palace com Noel Rosa e Carmen Miranda.

"Outra Biografia" é um livro em alguma medida sobre a morte. Mas é ainda mais sobre a vida que a contém. A vida sob o olhar de uma mulher que ao ver uma formiga dentro do açucareiro, pensa "na trip de paraíso que ela estaria vivenciando". E que vai além, deixando o recipiente aberto, caso ela "quisesse sair e cair na real". É um livro, enfim, sobre alguém que sabia o valor da viagem, mas não perdia de vista o real que a sustenta.

Rita Lee: Outra Autobiografia

  • Quando Lançamento nesta segunda (22)
  • Preço R$ 64,90 (192 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Rita Lee
  • Editora Globo Livros
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