Geraldo Vandré, aos 88, nega ser recluso, busca acervo em SP e vive como aposentado

Em rara aparição pública, cantor viúvo há dois anos comenta relação entre cancioneiro de protesto e gosto por militares

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O cantor Geraldo Vandré Karime Xavier / Folhapress

São Paulo

Personagem enigmático da música brasileira, o cantor e compositor Geraldo Vandré, de 88 anos, abandonou os palcos e renunciou à carreira artística depois de retornar para o Brasil em 1973, após cinco anos de exílio. Desde então foi envolvido em uma nuvem de mistério e curiosidade sobre os motivos de sua radical mudança de comportamento.

Diziam que na sua volta ele havia sido torturado pela ditadura para trocar de lado, sofrido lavagem cerebral para deixar para trás o cancioneiro de protesto e se orientar para assuntos mais líricos e distantes da realidade e da política.

Geraldo Vandré no hotel Braston, centro de São Paulo - Karime Xavier / Folhapress

Ele negou a tortura, mas nunca explicou a sua conversão de bardo subversivo, autor da clássica "Pra Não Dizer que Não Falei das Flores", em frequentador de quartéis e fiel amigo e admirador das Forças Armadas.

No final de maio, em rara aparição pública, Vandré compareceu a uma sessão especial do filme "A Hora e a Vez de Augusto Matraga", de Roberto Santos, lançado em 1965. O evento no Cine Bijou, em São Paulo, homenageava o artista, autor da trilha sonora do longa, baseado em um conto de Guimarães Rosa.

Antes da exibição, Vandré, que usava óculos escuros e boné, foi chamado à beira do palco, fez um rápido comentário sobre a trilha e foi ovacionado pela plateia. Entre os presentes se destacava a deputada federal Luiza Erundina, do PSOL, paraibana como ele.

Vandré veio resolver questões práticas em São Paulo. Teve um endereço na cidade por mais de 40 anos, em um apartamento alugado na rua Martins Fontes, no centro da cidade. O imóvel, o edifício Virgínia, foi vendido e começa a passar por uma reforma completa. Ele é o único antigo morador que deixou seus pertences ali.

Atualmente, o cantor mora no Rio de Janeiro, na casa da irmã, e também passa períodos em Teresópolis, no interior fluminense, onde a mãe, morta em 2011, deixou um imóvel.

Além de biblioteca, o tal acervo pessoal inclui desenhos, escritos e coleções. Vandré tem fardas, uma de general. Há pilhas de jornais, principalmente do Diário Oficial, do qual o artista era leitor voraz. Quem frequentou muito o apartamento foi o ator e poeta Luiz Carlos Bahia, amigo desde 1977, que se lembra de poemas e desenhos de aviões e helicópteros que Vandré fazia.

Outra conhecida de Vandré, a jornalista Maria do Rosário Caetano, conta que todo o espólio do intelectual ficou dentro desse apartamento. O material pode ser levado para fazer um memorial a Vandré na Paraíba.

Cena do filme 'A Hore e a Vez de Augusto Matraga', de Roberto Santos, de 1965 - Reprodução

Vandré conversou com a reportagem no lobby do hotel Braston, perto de onde morou. Chegou timidamente e parecia desconfiado. Vestia boné e óculos escuros. Apressado e pontual, ele foi lacônico em quase todas as respostas durante a entrevista de 21 minutos. Em várias, monossilábico. "Isso é normal", respondeu, com frequência. "Tenho uma vida normal, como qualquer um."

Ele minimizou a importância do acervo pessoal acumulado no apartamento. "Tive uns probleminhas aí, coisa normal de rotina", diz. "Mas acho que vou resolver." Quando questionado a respeito do possível memorial, Vandré se mostrou surpreso e ficou em silêncio.

Nos últimos dias, seu assessor, Darlan Ferreira, tem saído do edifício Virgínia carregando dezenas de caixas de papelão. Durante a entrevista, Vandré não sorriu. Ferreira disse que o chefe estava de óculos escuros por causa de uma recente cirurgia de catarata.

Advogado, Vandré se aposentou como auditor fiscal da extinta Superintendência Nacional de Abastecimento, a Sunab, incorporada nos anos 1990 ao Ministério da Fazenda. Só exerceu a profissão em algumas ocasiões em causa própria, como quando pleiteou sua reintegração aos quadros da Sunab. Já era funcionário concursado quando foi para o exílio e perdeu o cargo.

Vandré nunca enfrentou problemas financeiros e sempre pôde viver confortavelmente. Com uma boa aposentadoria, também recebeu direitos autorais ao longo da vida. Além disso, sua família tinha posses. O pai foi um bem-sucedido médico otorrinolaringologista.

Aos 88, Vandré se mostra vigoroso. Não parece amargurado ou ressentido. Ele conta que decidiu morar com a irmã, no Rio, depois que a mulher morreu. "Era casado e perdi minha mulher dois anos atrás", conta, reconhecendo o casamento e negando a vida solitária que sempre foi atribuída a ele. "Não tem nada de reclusão, estamos aqui conversando."

Sobre parecer enigmático, ele diz que a imprensa precisa disso e que ela mesma que constrói essa imagem. "A gente só coloca uma lenhazinha na fogueira", diz.

Explica de maneira singela sua aproximação com as Forças Armadas, em especial com a Força Aérea Brasileira, a FAB, para a qual compôs a música "Fabiana". Tudo começou quando ele pretendia tirar um brevê e fez um exame de saúde no Hospital da Aeronáutica. "Fui para isso e terminei fazendo amizades com o pessoal do hospital e frequentando rotineiramente o local", afirma. Acabou nunca tirando o documento.

Ele também subestima a importância de suas aparições e entrevistas e que não fala muito porque está distante do mercado. "Estou fora de atividade e não tenho o que reportar. Não estou fazendo nada", diz.

Explica ainda que parou de exercer atividade artística comercial porque perdeu o interesse. Sobre o fato de ter sido considerado um artista engajado ou um cantor de protesto, diz nem saber o que é essa classificação. "Isso é uma alienação. Cantor de protesto é americano. Eu fazia música brasileira". Quer distância da política e prefere não dar qualquer opinião sobre Lula ou Bolsonaro.

Rei dos festivais de música popular na segunda metade dos anos 1960, Vandré passou quase 50 anos sem fazer shows no Brasil. Em 1982 fez uma apresentação no Paraguai a convite da Itaipu Binacional vestindo roupas militares e coturno.

A última vez que subiu ao palco por aqui foi há cinco anos, com a Orquestra Sinfônica da Paraíba e a pianista Beatriz Malnic num teatro em João Pessoa. Declamou poemas e cantou "Pra Não Dizer que Não Falei das Flores" com roupas brancas, enrolado na bandeira brasileira. Ficou emocionado.

Ele admite ter perdido o controle sobre os sentidos e efeitos da sua música mais famosa, que disparou a perseguição da ditadura. "A gente compõe quando há demanda. Quando não há, a gente não faz nada", afirma. "Mas tenho composto com a Beatriz [Malnic] uma série de peças para piano. Fiz a apresentação de algumas delas na Paraíba e pretendo continuar esse trabalho quando tiver oportunidade."

Vandré, cujo verdadeiro nome é Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, leva uma vida simples. Escreve suas poesias, toma suas cervejas e não parece nem um pouco arrependido de ter deixado a carreira artística quando estava no auge.

Cuida também de transferir seus objetos acumulados na antiga residência e preservar sua memória. "O que faço hoje é ver televisão, dormir muito e comer bastante", diz. Quanto à tortura, segue negando. "Nem preso eu fui."

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