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No Brasil não falta comida, mas sobra pobreza, afirma Bela Gil na Feira do Livro

Chef diz que barreiras educacionais e geográficas dificultam acesso à alimentação saudável

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São Paulo

A chef e ativista pela agroecologia Bela Gil e a bartender Néli Pereira inauguraram os debates da Feira do Livro, em São Paulo, falando sobre as implicações políticas e culturais da comida e da bebida na mesa dos brasileiros.

"Precisamos de vários tipos de acesso para que a comida chegue ao nosso prato, mas um dos elementos centrais é o tempo", afirmou Bela Gil no palco, montado na entrada do Estádio do Pacaembu. O local estava cheio na manhã desta quinta-feira (8).

Mesa 'Alimentação da Cozinha ao Boteco', com participação de Bela Gil, chef de cozinha, e Néli Pereira, mixologista, mediada por Clarice Reichstul - Gabriel Cabral/Folhapress

A autora de "Quem Vai Fazer essa Comida?" (Elefante) defendeu que a alimentação saudável deveria ser o padrão. Ela, porém, afirma que isso é impossibilitado pela falta de educação alimentar e acesso geográfico e tecnológico.

Em muitas regiões, grandes deslocamentos são necessários para ter acesso à comida, enquanto algumas comunidades têm alimento, mas carecem de gás, panelas, água encanada ou fogão para cozinhar.

Ela citou o projeto Um Milhão de Cisternas, que possibilitou acesso à água no semiárido do país para que as pessoas pudessem cozinhar. "A pobreza faz a fome, alimento não falta", afirmou a apresentadora, frisando a diferença entre alimento saudável, produzido pela agricultura familiar e commodities, produto do agronegócio.

"Cozinhar na nossa sociedade é um trabalho doméstico não remunerado", defendeu a chef diante de um público bem dividido entre homens e mulheres, fato que ela considerou inédito.

"Esse trabalho precisa ser valorizado para que possamos ter tempo de cozinhar. Sem ele, nenhum outro trabalho seria possível. Ninguém sai de casa com ela cheia de pó e louça suja. Alguém precisa passar o café, e geralmente quem faz isso são as mulheres", afirmou.

"Precisamos beber menos e beber melhor. Se a indústria lança algo novo, todo mundo toma", criticou Néli Pereira, que lançou "Da Botica ao Boteco: Plantas, Garrafadas e a Coquetelaria Brasileira" (Companhia das Letras).

No livro, ela destrincha alguns ingredientes para a criação de coquetéis, apresentando estudos sobre a toxicidade de algumas ervas e seus usos seguros.

"O álcool é menos perverso que o açúcar, porque é uma droga silenciosa. Você vai comendo e comendo. Quando vê, precisa amputar um pé pelo diabetes", completou Gil.

Ela cita que uma latinha de refrigerante possui cerca de 35g de açúcar, o que equivale a cerca de 132% do valor que a OMS, a Organização Mundial da Saúde, recomenda consumir por dia.

Pereira contou que, quando começou o bar Zebra ao lado do marido, sentiu desconfianças algumas vezes por parte de clientes — especialmente homens — sobre seus conhecimentos como bartender. Isso a levou a trazer elementos que considera femininos para o ambiente, como um herbário no balcão.

"Muitas pessoas já me falaram que as ervas as lembraram de suas avós. Existe uma memória afetiva relacionada ao feminino, que acho que vem das ervas. Essa coisa servil de que o cliente tem sempre razão não cola. Não há abusos de nenhum tipo dentro do meu bar", afirmou, sob aplausos da plateia.

O trabalho doméstico rende 11 trilhões de dólares por ano, o que representa 13% do PIB mundial — dados que estão no livro de Gil e que apontam, segundo a autora, que a atividade subsidia o sistema capitalista no qual vivemos. "Estou reivindicando uma distribuição justa do valor desse trabalho. As mulheres produzem e sustentam a força de trabalho", defendeu.

Quando questionada sobre quais livros a inspiraram, ela citou "A Queda do Céu", do xamã Davi Kopenawa. "O problema é que o ser humano acha que não é natureza e quer dominá-la. Nossos bares e cozinhas devem ser uma extensão do pensamento de comunhão com a natureza, entendendo nossa responsabilidade dentro dela", concluiu.

O tom politizado continuou manhã adentro com os escritores Max Lobe e Abdellah Taia. Lobe nasceu em Camarões e Abdellah Taia, no Marrocos. Ambos escrevem sobre a experiência imigrante, não branca e gay —mas não individual. "A autobiografia narcísica não me interessa", diz Taia, "falo de mim para falar do outro". Lobe faz eco à visão do colega. "O que eu vivi não é importante. O denominador comum é importante."

Mesa 'Imigração, poesia e identidades' na Feira do Livro, com o autor suiço-camaronês Max Lobe e o franco-marroquinho Abdellah Taia, mediado por Diogo Bercito. Feira do Livro na Praça Charles Miller - Gabriel Cabral/Folhapress

Mas a subjetividade prevalece. "Um romance não é um relatório da Human Rights Watch", disse Lobe, dando uma dica de escrita a um espectador.

A mesa, mediada pelo jornalista Diogo Bercito, aconteceu em francês e foi traduzida simultaneamente. Com quase todas as cadeiras ocupadas, alguns gatos-pingados usaram os fones para ficar com o áudio original.

A tradução foi louvada pelo idealizador do evento, Paulo Werneck, mas sofreu com problemas técnicos no começo do debate. Além da microfonia, o francês apareceu como questão existencial para os autores.

O camaronês, que cresceu nos anos 1990, conta que foi desincentivado a usar as línguas locais em detrimento do inglês e do francês. "Fui estudar na Suiça e me dei conta que continuo na periferia da francofonia."

Taia se lembra de ver televisão com a família e zombar os intelectuais marroquinos que falavam o idioma do colonizador com sotaque parisiense. "Minhas irmãs não queriam se casar com ricos que citavam Victor Hugo como se fosse parente deles." As irmãs —"seis divas"— foram figurinhas marcadas nas falas de Taia. Segundo ele, foi com elas que aprendeu a ser gay, outro tópico incontornável do debate.

Para o marroquino, heterossexuais não se interessam pela beleza nas relações gays. "Em resposta, preciso me tornar ainda mais homossexual do que já sou. Não sei como", disse, entre risos.

Lobe diz que precisamos nos dar conta que homens que gostam de dar lições de moral estão citados pelo MeToo, no Vaticano, mas que é com a comunidade LGBT que o sexo se torna uma questão moral —e presente nos questionamentos sobre literatura dos autores gays.

A Feira do Livro conta com mesas abertas ao público até domingo, na praça Charles Miller, em São Paulo.

A Feira do Livro

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