Trabalho doméstico sem salário não é amor, é escravidão, diz Bela Gil

Chef diz que ultraprocessados causam genocídio invisível e defende remuneração de donas de casa; leia transcrição

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Eduardo Sombini
Eduardo Sombini

Geógrafo e mestre pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

No clássico "Geografia da Fome", de 1946, Josué de Castro virou pelo avesso o debate sobre o flagelo que assolava milhões de brasileiros. A fome, ele dizia, não pode ser reduzida à falta de alimentos, causada por secas ou outros fenômenos naturais: ela precisa ser vista como uma questão política, relacionada ao latifúndio, à monocultura de exportação e ao descaso de governos.

Quase 80 anos depois, o Brasil enfrenta mais uma vez taxas alarmantes de insegurança alimentar, mas hoje, lembra Bela Gil, a fome não é o único nó quando se pensa em comida.

O consumo de ultraprocessados vem impulsionando um novo tipo de desnutrição: a obesidade convive com a carência de nutrientes e está na raiz da epidemia de doenças crônicas como diabetes e problemas cardíacos. Esse cenário, para a chef de cozinha e apresentadora de TV, lembra um genocídio silencioso, que afeta pessoas pobres e racializadas com mais força.

No recém-lançado "Quem Vai Fazer essa Comida" (Elefante), Bela Gil lança um olhar amplo sobre os hábitos alimentares difundidos pelo agronegócio e pela indústria alimentícia.

O livro se distancia da responsabilização individual e reflete sobre as questões econômicas e sociais que fazem com que a alimentação saudável seja um privilégio para poucos, enquanto os ultraprocessados, baratos e práticos, se tornam a única opção para milhões de pessoas.

Neste episódio, a autora defende que é preciso revolucionar a produção e o consumo de alimentos e finalmente reconhecer o valor do trabalho doméstico, feito principalmente por mulheres, tão essencial para a existência de outras ocupações fora de casa.

Tem uma frase maravilhosa da Silvia Federici que eu coloco no livro. Ela diz: "O que vocês chamam de amor, eu chamo de trabalho doméstico não remunerado". Essa é uma grande questão: a construção das mulheres e do feminino dentro dessa sociedade patriarcal foi através da domesticação para continuar nesse lugar do trabalho e do cuidado por amor —por amor ao marido, às crianças, é tudo por amor. Toda a nossa exaustão, o nosso estresse, as nossas doenças [...] são justificado pelo amor

Bela Gil

chef de cozinha e apresentadora de TV

Ela diz que esse trabalho, geralmente não remunerado, vem sendo apropriado pelo capitalismo e que pagar salários às donas de casa é uma ferramenta essencial de justiça social.

Um dos caminhos para a gente vislumbrar a igualdade social, de gênero e de raça é através da remuneração do trabalho doméstico e do cuidado, que não é remunerado hoje, porque é ele que sustenta o sistema capitalista. Se a gente não estivesse trabalhando de graça, as pessoas não estariam lucrando como estão. As pessoas que trabalham precisam receber, senão isso é escravidão

Bela Gil

chef de cozinha e apresentadora de TV

Leia a transcrição da entrevista abaixo.

Seu livro conecta dois grandes temas: a alimentação, de um lado, e o trabalho doméstico e reprodutivo, de outro. A gente está falando de cozinhar, cuidar das crianças e dos idosos, se ocupar de outras tarefas domésticas, e isso tudo costuma recair sobre as mulheres. Eu queria começar te pedindo para fazer um balanço sobre como a gente chegou até aqui nos dois temas, começando pelos nossos hábitos alimentares. Você chama a atenção que a alimentação dos brasileiros ainda é bastante calcada na "comida de panela", mas o consumo de alimentos in natura vem perdendo espaço para processados e ultraprocessados. Um exemplo disso é que o consumo de arroz e feijão, esse prato tão tradicional e nutritivo, vem diminuindo no Brasil há vários anos. Como você enxerga esse cenário? Caímos no conto do vigário, digamos assim, e muito pela forma como o nosso sistema econômico se dá na nossa sociedade. Ele induz a isso, porque uma das coisas mais importantes para o nosso sistema hoje é a nossa força de trabalho: a gente precisa trabalhar para sobreviver, a gente precisa ter tempo para cozinhar, o que tira um pouco o tempo do trabalho. É uma conta que realmente não fecha.

Minha resposta mais objetiva em relação a como a gente chegou a essa má alimentação, que eu chamo de má alimentação estrutural do brasileiro: não vejo como culpabilizar o indivíduo pela alimentação que ele tem, porque acho que a gente foi induzido a chegar ao lugar que a gente está hoje em relação à alimentação, consumindo cada vez mais produtos ultraprocessados e cada vez menos comida de verdade pelo simples fato de que a comida ultraprocessada é muito mais simples, está ficando cada vez mais barata e é de fácil preparo e de fácil acesso.

Muitas vezes, muitas pessoas moram em desertos alimentares ou pântanos alimentares, onde elas encontram muito mais facilmente produtos ultraprocessados que produtos in natura. Até mesmo o acesso físico ao alimento, à comida de verdade, para se tornar uma comida de panela, é mais difícil, é dificultado pelo nosso sistema vigente, socioeconômico e geográfico também.

Essa é a grande questão: as pessoas estão cada vez mais com escassez de tempo, porque elas precisam produzir cada vez mais para sobreviver na nossa sociedade, elas precisam produzir para ganhar dinheiro, e a comida, o cozinhar é contraproducente a curto prazo. Uma pessoa que tem duas ou três jornadas de trabalho, chega em casa, tem que fazer ainda o trabalho doméstico, cuidar das crianças, resolver todas as coisas e muito mais, não é necessariamente fácil, mas é o que cabe na rotina, na vida daquela pessoa, abrir um pacote de biscoito e distribuir para a criançada, ou pegar a salsicha e misturar com miojo ou, enfim, coisas nessa praticidade.

A gente chegou nesse lugar porque a comida ultraprocessada está ficando cada vez mais acessível. Ela encaixa na vida das pessoas de uma maneira que a comida de panela não é tão fácil assim, exige um trabalho, um esforço maior. Basicamente, esse é o lugar que a gente chegou, só que isso tem consequências muito graves, que são invisibilizadas na sociedade.

Saiu um estudo no final do ano passado mostrando que, em média, morrem 57 mil brasileiros por ano pelo consumo direto de produtos ultraprocessados. Ou seja, o número é maior que o de vítimas de homicídio no país, e a gente sabe que, quando a gente fala de arma, de assassinato, de violência, isso gera uma comoção e um choque muito grande na sociedade. Só que a comida ultraprocessada está matando mais que isso e ninguém fala disso, e estão oferecendo essa comida para as crianças, em hospitais, em escolas. É um genocídio invisibilizado e proposital, obviamente, porque a gente sabe quem lucra com isso. Esse é o lugar que a gente chegou com a alimentação.

A questão do trabalho doméstico, a economia do cuidado e tudo isso se dá com a nossa história de escravização. Quando a gente fala do trabalho doméstico, tem um corte racial, não só de gênero. De gênero, eu acho que está bem escancarado, que a gente sabe que a maior parte das pessoas que fazem esse tipo de trabalho são as mulheres, mas o corte racial também é muito forte.

Normalmente, quando é o trabalho não remunerado, são mulheres pretas ou migrantes que moram na periferia que têm que dar conta de tudo, do trabalho de casa, do trabalho de fora de casa, enquanto a elite ou pessoas de classe média, classe média alta e brancas terceirizam esse trabalho. Ou seja, não fazem esse trabalho, mas pagam alguém para fazer. Normalmente esse trabalho é mal remunerado.

Acho que a gente chegou nesse cenário, o trabalho do cuidado ser um trabalho que explora muito mais as mulheres e as mulheres pretas e as mulheres pretas de periferia, pretas e pobres, por causa da nossa história de escravização, porque, quando houve a Abolição, por exemplo, não houve uma inserção no mercado de trabalho dessas mulheres, não houve um investimento na sua educação, não houve investimento social para essas pessoas. O que coube a elas foi fazer o serviço que antes era feito de graça e agora se paga mal. Basicamente isso.

Essa é uma questão que, para mim, é muito importante, porque quando a gente fala de feminismo, das lutas e das conquistas feministas, a gente sabe o quanto a gente conseguiu, a gente conquistou, até onde a gente chegou, mas é muito importante ter em mente que a gente não conseguiu no feminismo branco, não se foi perguntado onde e como estava o poder. A opressão continuou no mesmo lugar.

Uma mulher hoje, branca, bem-sucedida, ainda assim, em algum lugar, explora a mão e o trabalho e o corpo de uma mulher preta, pobre, digamos assim. Houve uma perpetuação da opressão. Isso não foi totalmente transformado na sociedade ainda, e eu acho que esse livro traz um pouco de luz para esse lugar.

É interessante essa crítica que você faz à segunda onda do feminismo, que a gente sabe que era muito branco, muito elitista. De alguma maneira, era mais cômodo para essas mulheres de classe média, classe média alta, enfrentar a desigualdade no mercado de trabalho tendo uma mulher que cuidasse de casa que lidar com essas duas dimensões. Como você enxerga esse problema hoje? A gente avançou na discussão do feminismo, do racismo, para incorporar o trabalho reprodutivo, o trabalho doméstico, ou isso continua muito marginal ainda? Acho que continua muito marginal, também porque houve um desmantelamento de muitas políticas públicas que estavam fazendo possível a discussão na sociedade sobre isso e fazendo com que as mulheres que fazem esse trabalho, o trabalho doméstico malremunerado ou não remunerado, terem uma perspectiva e uma possibilidade de vida diferente.

Acho que a gente não pode eximir o Estado da sua responsabilidade também. A gente, muitas vezes, coloca no indivíduo o peso da responsabilidade de algo que não deveria estar só com ele. Quando eu falo de trabalho doméstico —e no livro eu aponto bastante isso— é um trabalho que tem que sair do âmbito doméstico. Ele precisa ser olhado, ele precisa ser apoiado por toda a sociedade. É um trabalho que acontece dentro de casa? Sim, mas ele não precisa e não pode só estar dentro de casa. Quando eu falo isso, quero dizer que a gente precisa melhorar a questão da equidade, da igualdade, da divisão do trabalho entre os gêneros dentro de casa? Sim. Entre homens e mulheres? Sim. Entre raças? Sim, precisamos.

Tudo isso é necessário, só que a gente não pode deixar de responsabilizar também o Estado e cobrar dele esse apoio, esse suporte, porque é só por causa desse trabalho, do trabalho do cuidado, que outros trabalhos são possíveis e que as pessoas estão produzindo e fazendo a máquina da economia girar. Se não fosse esse trabalho, nada disso funcionaria. Então, sim, o Estado tem responsabilidade sobre esse trabalho também.

Aí, o que eu quero dizer é que a gente poderia ter mais creches, a gente pode e deve melhorar cada vez mais o Pnae, que é o Programa Nacional de Alimentação Escolar, para que as crianças sejam bem alimentadas, com uma comida de qualidade. Uma mãe qualquer, que não pode cozinhar ou fazer um almoço todo dia da criança, pelo menos sabe que tem merendeiras maravilhosas cozinhando para os filhos dela uma comida de qualidade todos os dias. Isso é maravilhoso. A gente precisa de mais cozinhas comunitárias, lavanderias comunitárias, restaurantes populares.

Estou focando um pouco mais a alimentação, mas, obviamente, o trabalho doméstico é muito amplo, o trabalho do cuidado é muito amplo, mas focando essa questão da alimentação, eu acredito que vivemos em sociedade, não é todo o mundo que pode cozinhar todos os dias. Outras pessoas podem fazer isso por outros, e acho que a gente democratizar o acesso à alimentação com restaurantes populares, cozinhas comunitárias, comida de qualidade nas escolas, nas creches, principalmente, já alivia bastante o peso do cozinhar, ter que produzir três refeições por dia dentro de casa —quando conseguem ter acesso à comida para fazer três refeições dentro de casa.

Então, é basicamente isso, a minha visão é esta: a gente precisa melhorar bastante a divisão do trabalho entre os gêneros, mas a gente também precisa cobrar do Estado políticas públicas que aliviem esse trabalho e tirem esse trabalho só do âmbito doméstico.

Um traço muito interessante do livro que você está mencionando aqui é que você nunca segue por esse caminho da responsabilidade do indivíduo, você faz sempre uma leitura dos fatores sociais, de soluções mais amplas para enfrentar essas questões, e, obviamente, isso passa por políticas públicas. Queria te pedir para falar sobre uma proposta de política pública que tem um grande destaque na sua obra e gera um grande debate no feminismo há algumas décadas: a ideia de remunerar o trabalho doméstico e reprodutivo. Por que você considera essencial que as donas de casa recebam salários? Sou a favor porque é um trabalho que já foi contabilizado por economistas, e esse trabalho tem uma somatória de US$ 11 a 13 trilhões por ano [no mundo]. Quando a gente fala de remuneração, nada mais é que a partilha dessa soma, o valor desse trabalho voltando para o bolso de quem produz, porque existe essa alienação, do capital, desse trabalho. A gente está subsidiando o capitalismo quando faz esse trabalho de graça.

Quando esse trabalho for remunerado, vai haver um reboot no sistema. Acho que realmente a gente está precisando desse chacoalhão, porque do jeito que está, o capital só se acumula e, cada vez mais, na mão de poucas pessoas que vão ficando cada vez mais poderosas e a desigualdade social vai se agravando.

Acho que um dos caminhos para a gente vislumbrar a igualdade social, a igualdade de gênero e a igualdade de raça é através da remuneração do trabalho doméstico, que não é remunerado hoje, o trabalho do cuidado, porque é ele que sustenta o sistema capitalista. Se a gente não estivesse trabalhando de graça, as pessoas não estariam lucrando como estão. As pessoas que trabalham precisam receber, senão isso é escravidão, e a gente está, de certa forma, escravizando ainda aquelas pessoas que fazem um trabalho de graça e outros lucram com isso. Elas precisam receber o mínimo.

Para mim, é tão óbvio, que é tipo, "poxa, você trabalhou para mim oito horas e por que você está reivindicando remuneração"? "Você fez, pedi para você cozinhar para mim, te contratei para cozinhar oito horas por dia e você agora quer dinheiro? Mas por quê?"

Tem uma frase da Silvia Federici, que eu até coloco no livro, que é maravilhoso. Ela diz: "O que vocês chamam de amor, eu chamo de trabalho doméstico não remunerado". Porque essa é uma grande questão: a gente foi, as mulheres e toda essa construção do feminino dentro dessa sociedade patriarcal, foi através da domesticação para continuar nesse lugar do trabalho, do cuidado, por amor —por amor ao marido, por amor às crianças, é tudo por amor.

Toda a nossa exaustão, o nosso estresse, as nossas doenças, a nossa perda de cabelo, a nossa bipolaridade, a nossa ansiedade, a nossa síndrome de pânico, tudo é justificado pelo amor. Isso também precisa ser revisto. A gente precisa separar o joio do trigo, é muito diferente. Uma coisa é amor, outra coisa é trabalho, então vamos colocar as duas coisas na balança: isso daqui precisa de remuneração e o que for amor, a gente faz de graça e tudo bem.

Agora, o que eu acho interessante, já que você colocou as políticas públicas, no Brasil, a gente começou a traçar um caminho nesse lugar, que era a Bolsa Família. Graças a Deus voltou, e eu acredito muito que ele é uma sementinha dessa ideia da remuneração do trabalho doméstico.

Você cita um termo, se não me falha a memória, da Larissa Bombardi, professora de geografia da USP: a exploração da generosidade feminina. Eu gostei muito desse termo, gostei muito do quarto capítulo do seu livro também, em que você associa, a partir das obras da Silvia Federici e da Vandana Shiva, a palavra terra, que no português e em outras línguas nomeia tanto planeta quanto o solo, onde a gente planta e colhe, ao arquétipo feminino. Você diz que a terra-planeta e a terra-solo estão sendo masculinizadas com essa agropecuária mundializada que a gente conhece hoje e a subjugação de todos aqueles outros do homem branco: as mulheres, os negros, os indígenas etc. Essa discussão pode soar meio esotérica para alguns, mas ela tem muito fundamento nas ciências sociais. Você apresenta os autores, você apresenta esse debate, e queria te pedir para falar um pouco sobre isso. Por que essa associação entre o feminino e a terra e como isso nos ajuda a pensar o lugar das mulheres nessa sociedade? É bem interessante você trazer isso, porque eu fiquei pensando muito, quando estava escrevendo, eu falei, "gente, eu quero um livro bom, sério, que as pessoas me ouçam", e aí eu vou falar sobre a exploração da generosidade feminina, colocando a mulher e a terra como objetos de exploração, objetos a serem explorados por essa sociedade. Vão me achar... enfim [risos].

Mas que bom que você tocou nesse assunto, que bom que você leu, entendeu, gostou, porque eu acho que, do mesmo jeito que eu estava reivindicando a remuneração do trabalho doméstico por ser um trabalho, e a gente sabe que quem trabalha de graça está sendo escravizado, a gente faz a mesma coisa com a terra. Há uma exploração do feminino, da mulher, da mãe, enfim, no arquétipo, no ser humano, a mulher, e da terra.

Isso é fato, a gente vem explorando a terra cada vez mais e sabe que essa exploração está degradando o solo. Cada vez mais, a gente está precisando de insumos químicos, fertilizantes químicos, para dar conta dessa exploração, e não só o solo para a gente plantar, mas a terra como um todo. A gente vê acidentes que acontecem nas mineradoras, tudo isso que está acontecendo, essas catástrofes, esses desastres, é tudo por causa dessa exploração da generosidade feminina, que a gente pode direcionar para a terra, a terra como o planeta Terra, mas também a terra e o solo.

Para haver um equilíbrio disso, a gente precisa reaver o aspecto feminino da terra, a gente precisa reivindicar e reconquistar, trazer de volta esse cuidar da terra com um olhar mais feminista e mais feminino, que é o contraponto do agronegócio, dessa exploração bem patriarcal, masculinizada da terra, essa exploração infinita. A agroecologia é esse contraponto.

A gente consegue ver: o sistema do agronegócio é muito masculinizado, muito patriarcal, muito focado somente no sistema capitalista, visando o lucro, trata a comida não mais como um direito humano e simplesmente como uma mercadoria, tira qualquer valor intrínseco da comida como alimento e só precifica, aquilo ali já não tem mais valor humanitário, biológico. A gente vê tanto desperdício acontecendo para poder balancear a balança comercial, se colheu muita soja, muito tomate, muita batata, não, "vamos dispensar um pouco, desperdiçar aqui um pouco, para poder deixar o preço competitivo". Assim, você elimina o valor intrínseco biológico daquele produto e coloca um preço naquilo. Esse olhar é muito bruto, é muito brutal.

Eu realmente enxergo, como a Larissa fala, essa masculinização forçada da natureza. Do outro lado, a gente tem, graças a Deus, cada vez mais a agroecologia se restabelecendo e produzindo comida, comida de verdade, de uma maneira socialmente justa também, com uma igualdade de gênero melhor, sem maltratar o solo, sem maltratar a terra, sem tanta violência. Isso que eu quero dizer: acho que a violência separa muito um do outro. Existe muita violência no sistema de monoculturas e agronegócio e tudo mais, enquanto há um respeito maior à generosidade feminina quando a gente produz comida dentro da agroecologia.

Isso é interessante, porque quando você fala, parece que tratar o aspecto feminino da terra está relacionado a construir a fertilidade em oposição a extrair valor da terra, que é a lógica da monocultura, e também uma ideia de que a monocultura é cartesiana. Ela se distancia do pensamento ecológico, dessa ideia de que as coisas existem em relação, que é mais ou menos o princípio da agroflorestal. Você não está falando do milho ou da mandioca em si, mas das relações daquilo tudo, e o resultado vem não da planta em si, mas de como tudo aquilo se relaciona. É um organismo.

Isso, de alguma maneira, aponta para um futuro diferente, para uma mudança da nossa relação com a alimentação, com a produção, com o consumo? Como você vê esse tipo de produção daqui a algum tempo? Bom, o que eu vejo não necessariamente corresponde ao que eu espero, porque está difícil! Porém, a gente está trabalhando para, então tudo bem, vou dizer aqui o que eu gostaria que acontecesse.

Quando a gente fala de alimentação saudável, não tem como deixar de lado a questão da distribuição de terra, porque o Brasil é um dos países com a maior concentração de terra. A gente precisa de uma reforma agrária realmente eficiente e popular no país para que a gente consiga, primeiro, democratizar o acesso à terra, porque as pessoas muitas vezes esquecem que a comida que a gente come vem da terra.

A gente precisa de terra para plantar, as pessoas precisam de terra para produzir, então a gente precisa que esse meio de produção esteja bem distribuído e não concentrado na mão de poucos, e isso é o que acontece no Brasil. Quase que 70% da área está na mão do agronegócio, que produz nem 30% do que a gente consome, então tem que mudar essa questão, tem que, no mínimo, equalizar. A gente precisa de uma boa distribuição de terra para começar a falar na democratização do acesso aos alimentos, então, acho que, tendo isso como uma premissa e isso acontecendo, a gente teria muito fôlego e muito mais possibilidade de fazer com que as pessoas queiram e possam comer melhor.

Aí, entram também as políticas públicas que hoje já estão vigentes. Tem o PAA, o Programa de Aquisição de Alimentos, que compra diretamente de produtores, agricultores familiares. Isso dá uma garantia para esses produtores de que a colheita, o cultivo deles será utilizado. Isso é muito importante para um agricultor, ter a compra da sua produção garantida. O PAA é superimportante. O PNA é outro programa que também já tem a lei da aquisição de, pelo menos, 30% da alimentação, que tem que vir da agricultura familiar. Assim, estimular a agricultura familiar e a transição agroecológica é fundamental e essas políticas públicas são formas de incentivar, estimular isso.

Tenho essa esperança de que a gente consiga fazer com que a comida de verdade seja mais acessível, sabe? Que a gente consiga realmente democratizar através desses pontos que eu coloquei aqui.

Obviamente, a gente precisa também acabar com o incentivo fiscal que acontece na produção, por exemplo, de produtos ultraprocessados, como é o refrigerante, como é o caso de refrigerantes ali na Zona Franca de Manaus. É um absurdo, né? Uma coisa que a gente sabe que mata. Gente, as pessoas estão morrendo, são 57 mil pessoas que morrem por ano pelo consumo de produtos ultraprocessados, e a gente paga para isso, para facilitar o consumo desses produtos que matam. É realmente muito complexo. E a questão dos agrotóxicos, porque o setor de agrotóxicos no Brasil tem uma isenção. Deixa de entrar para os cofres públicos R$ 10 bilhões por ano, o que é um somatório muito grande que a gente poderia estar fazendo muita coisa.

A gente precisa mudar o olhar. Incentivar o que é bom, o que faz bem, o que é bom para a terra, o que é bom para a saúde, o que não dá muito lucro para poucas pessoas, mas que dá lucro para todo o mundo. É distribuição do lucro em forma de vida que eu quero dizer. É a gente investir na vida das pessoas e dar possibilidade para que as pessoas vivam bem e melhor e não necessariamente envenenar boa parte da população com veneno mesmo, agrotóxicos, ou com comida envenenada ou com produtos ultraprocessados para dar lucro para poucos.

Se a gente tiver isso em mente e as pessoas que estão com a caneta na mão, com o poder de tomar decisão, tiverem isso em mente, acho que dá para a gente mudar completamente o rumo da nossa alimentação e fazer com que as pessoas queiram e possam comer melhor.

Bela, você participou da equipe de transição, no grupo de trabalho de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e foi convidada para ocupar uma secretaria especial de Alimentação Saudável no Ministério do Desenvolvimento Agrário. Queria te pedir uma avaliação das ações do governo Lula até aqui nesse tema. O MST, por exemplo, vem criticando a lentidão em nomeações no Incra e a falta de prioridade à questão agrária. Me parece que existe um certo fetiche do presidente e da esquerda com churrasco e picanha, por exemplo, não com arroz orgânico ou agroecológico e inhame. Como você enxerga essa conjuntura atual? Bom, acho que está muito cedo para dizer, mas eu acredito que a vontade existe e é o que é mais importante. Estou trabalhando diretamente com o ministro Paulo Teixeira, no Ministério do Desenvolvimento Agrário, e ele sim tem muita vontade de trabalhar políticas públicas que garantam acesso à alimentação saudável, que é um direito universal, está na Constituição. Então, garantir o acesso a esse direito para toda a população, através, obviamente, do que cabe a ele no ministério dele, que é a agricultura familiar. Como fomentar a agricultura familiar, como fazer políticas que possam valorizar a agricultura familiar e comprar a comida dessas pessoas e colocar na mesa do povo —essa vontade existe, e isso me anima muito. Acho que isso é muito importante.

Agora, essas questões mais macroeconômicas, acredito que o presidente mudou bastante, não só como político, mas também como pessoa em relação à sua visão de alimentação. No primeiro governo dele, a maior prioridade era acabar com a fome e, tendo como prioridade, ele conseguiu. Acho que isso é, na política, muito verdade. Quando a gente tem vontade de fazer acontecer, é quase certo que aconteça. Ele tirou o Brasil do mapa da fome. Isso é maravilhoso.

Agora, ele já está com outra visão. Não é tirar o Brasil do mapa da fome a qualquer custo. Ele sabe que a comida vem matando, ou por falta dela, as pessoas morrendo de fome, ou porque estão comendo mal. Então, há um cuidado agora também em relação à qualidade do que é ofertado para a sociedade. Para ele, não basta só agora acabar com a fome. Claro, é prioridade, sim, comida na mesa de todo o mundo, mas a gente precisa de comida de qualidade. As pessoas precisam de acesso à comida de qualidade, porque, senão, as pessoas continuam morrendo. Podem estar comendo, mas comendo mal, continuam morrendo, e isso já é do conhecimento dele. Ele sabe dessa importância.

Outra coisa que ele, inclusive, falou na COP, que eu achei muito maravilhoso: ele também já sabe da importância ambiental de uma produção mais sustentável. Ele sabe dos impactos ambientais da monocultura, de monoculturas transgênicas. Ele sabe dos impactos ambientais da produção de carne, de gado. Ele está com um grande pepino na mão, mas acho que, só de ele ter o conhecimento e a consciência, já é um grande passo. Vejo que, claro, é muito cedo para dizer, mas eu gosto da proximidade do presidente com o movimento, por exemplo, do MST. O movimento apoia muito ele. Ele tem um respeito muito grande pelo movimento, e acho que fica mais fácil de conversar.

E o movimento, o MST, hoje em dia, está com um olhar também muito diferente para a produção. Também não é estar em uma terra, conquistar uma terra e produzir qualquer coisa a qualquer custo. Sabem da importância de uma produção livre de veneno, voltada à agroecologia, com agroflorestas e tudo mais. Então, acredito muito no potencial desse governo para que a gente consiga mudar um pouco o nosso sistema alimentar para que seja mais limpo, mais justo e mais saudável.

Bela, para a gente se encaminhar para o final: no último capítulo do livro, você escreve que a sua crítica à indústria alimentícia de hoje não significa a defesa de uma volta ao mundo pré-industrial. O problema, para você, é que essa dimensão da vida —tão fundamental à nossa sobrevivência, que molda o nosso cotidiano, é uma manifestação cultural— esteja na mão de corporações que, em nome do lucro, atropelam a saúde pública e o meio ambiente. Você faz um debate sobre como as novas tecnologias impactam esse cenário. Queria te pedir para resumir um pouco essa discussão. A tecnologia pode ser uma aliada da democratização da alimentação saudável —pensando, por exemplo, nas comidas produzidas em laboratório hoje, que prometem diminuir os custos e os impactos ambientais— ou ela tende a reforçar as desigualdades que a gente já conhece? Acho que, quando a gente fala da tecnologia, ela tem muito a contribuir, só que, obviamente, não pode estar disponível para somente uma parcela da população. Por isso que eu gosto de sempre ir na base. Não acho que a gente vai conseguir justiça social sem a remuneração do trabalho doméstico. Acho que a gente não vai conseguir democratização da alimentação sem a reforma agrária. Então, acho que, estabelecendo pressupostos, a gente precisa construir uma base, um chão, para depois a gente entender como as coisas vão se dar. Tendo isso em vista, tendo isso conquistado, tendo isso feito, tendo isso como um norte, a tecnologia tem muito a contribuir.

Eu, inclusive, falo no livro: mudei muito a minha visão em relação ao ato de cozinhar e às pessoas que não necessariamente gostam ou querem cozinhar, porque eu acredito que, sim, a gente vive em sociedade e a gente pode distribuir esse trabalho. Não acredito que todo o mundo deva ou tenha que cozinhar, e acho que a tecnologia pode suprir isso. Imagina, eu não sei como seria a vida e quanto tempo levaria para fazer um trabalho doméstico sem uma máquina de lavar roupa, sem uma máquina de lavar louça, fazer comida sem um liquidificador, sem uma geladeira. São tecnologias que estão aí faz um tempinho e que mudaram completamente a nossa rotina. Isso é fundamental. Acho que o avanço da tecnologia e da inteligência artificial pode ajudar cada vez mais a gente a diminuir o tempo expendido nessas tarefas. Isso é muito importante.

Ao mesmo tempo, quando a indústria entender, aí também é uma mudança de paradigma, porque enquanto a produção de alimentos estiver somente focada no lucro, nada vai mudar. Mas se, por algum acaso, a gente conseguir fazer com que a indústria produza alimentos que a gente sabe que são verdadeiramente bons para a saúde, eu sou super a favor. Eu seria a primeira a comprar. A indústria pode e deve ser uma aliada da produção de alimentos saudáveis, comprando de produtores orgânicos, agroecológicos, saindo da lógica puramente capitalista, visando lucro, comprando de monoculturas. Porque essa é a questão sobre os produtos industrializados.

A gente só tocou no aspecto da saudabilidade, a gente nem tocou na questão ambiental, que eu também falo bastante no livro. A gente vai para o supermercado, e a maior parte, mais de 90% dos produtos industrializados ultraprocessados que estão ali têm como base a soja, o milho, o trigo, a cana-de-açúcar, que são basicamente monoculturas, que estão devastando o nosso país, o cerrado, a Amazônia, destruindo nossos biomas.

A gente vai continuar incentivando a produção desses produtos em detrimento do meio ambiente, em detrimento da nossa saúde, ou a indústria pode entender que há outra possibilidade, que a gente pode, inclusive, não só eliminar a produção de gases de efeito estufa com a agricultura, porque a agricultura e a agropecuária geram mais de 35% dos gases de efeito estufa no Brasil. Mais de um terço dos gases que a gente emite vem da produção de comida, vem do sistema alimentar, isso é muito crítico.

Então, a ideia não é, "tá, Bela, pô, peraí, então a gente vai parar de comer, não dá mais para comer"? Não é isso, dá para comer, mas a gente precisa mudar a forma como a gente produz os alimentos, principalmente, como a gente distribui e como a gente consome. O que a gente consome dá para mudar, dá para a gente, não só, como eu falei, eliminar a produção de gases de efeito estufa, como dá para a gente mitigar, dá para a gente reverter com sistemas, por exemplo, agroflorestais, que já é comprovado que sequestram carbono.

Então, fazer uma transição de uma monocultura de soja, por exemplo, ou uma produção de gado no pasto, totalmente devastado, e passar para uma produção agroecológica, por exemplo, de soja. Produção agroecológica regenerativa sequestra carbono, e de gado, se você passar para uma produção civil pastoril, que é a conjunção de gado com árvore, você sequestra carbono. Gente, por que a gente não faz isso? Dá para mitigar o aquecimento global com a produção de comida. Então, é uma mudança muito grande de paradigma, mas aí a gente cai sempre no mesmo lugar. O lucro é sempre o mais importante na nossa sociedade hoje. Então, fica difícil.

Bela, para a gente encerrar, você falou agora de gado, e eu fiquei pensando sobre isso ao ler o seu livro. Você discute como a alimentação saudável é essencial para a saúde pública e para o meio ambiente, critica a exploração capitalista, o machismo, o racismo, mas você não aprofunda no livro o debate sobre especismo e sofrimento animal. Fiquei pensando nisso porque um bom número de pesquisadores e ativistas defendem que os mecanismos que subjugam humanos e não humanos são os mesmos e que a libertação animal é a irmã da libertação humana. Queria te pedir para falar sobre isso, e não posso deixar de mencionar que você é, sem dúvida, uma das maiores divulgadoras no Brasil de dietas baseadas em plantas, em princípios do vegetarianismo, do veganismo. Que lugar você enxerga para, digamos, uma ética vegana nesse debate sobre alimentação saudável, trabalho doméstico, meio ambiente? Acho que você tocou em um ponto superimportante, é fundamental. Eu estou no meio de um livro muito interessante que fala sobre isso, que é "A Política Sexual da Carne", da Carol Adams. Ela faz um paralelo interessantíssimo entre misoginia, violência contra a mulher e a dominação, opressão animal, de humanos contra os animais. A objetificação: a gente acaba objetificando muito o animal e a mulher, que acabam ficando no mesmo lugar. É bem interessante.

Acredito que, nisso, estou junto com os ativistas de direitos dos animais em relação a essa visão de que, com a libertação animal, a gente também se liberta. Só que, como eu sou um pouco mais, digamos assim, imediatista, eu quero ver mudanças rápidas acontecerem. Deixei essa discussão um pouco de fora porque não queria cair mais uma vez na utopia pura. Porque acho que isso é possível, mas vai demorar e vai demorar muito, porque é uma mudança, é uma quebra de paradigma muito grande.

Como você mesmo colocou, a gente ainda tem o imaginário do churrasco e da cerveja na nossa cultura, a questão de status social e tudo mais ainda está muito pautada no consumo da carne. Eu não consumo, mas não sou daquelas que, sabe, "eu não como, você também não pode comer". Acho que a gente tem que ter muito cuidado quando a gente fala disso, principalmente para uma população que está ascendendo, uma pessoa que nunca teve acesso, por exemplo, à carne e hoje você falar "ó, não é legal comer carne". "Porra, mas você comeu a vida inteira, agora eu não posso?" Então, com um pouco mais de empatia, um pouco mais de humildade, acho que a gente chega lá.

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O podcast entrevista, a cada duas semanas, autores de livros de não ficção e intelectuais para discutir suas obras e seus temas de pesquisa.

Já participaram do Ilustríssima Conversa Javier Montes, escritor espanhol que se debruçou sobre a vida da dançarina e naturista Luz del Fuego, Paulo Arantes, professor de filosofia da USP para quem Lula terá sucesso se frear a extrema direita, Eliane Brum e Maria Rita Kehl, convidadas para o episódio comemorativo dos cinco anos do podcast, João Moreira Salles, autor de um livro sobre o modelo predatório de ocupação da Amazônia, Ailton Krenak, que abordou a tragédia do povo yanomami, Gabriela Lotta e Pedro Abramovay, que discutiram os papéis de burocratas e políticos em uma democracia, Felipe Loureiro, que analisou as relações entre EUA e Rússia depois do início da Guerra da Ucrânia, Denise Ferreira da Silva, para quem a violência racial é um pilar da modernidade, Letícia Cesarino, antropóloga que expõe como algoritmos favorecem o populismo, Roberto Moura, que relançou clássico sobre a história negra do Rio, entre outros convidados.

A lista completa de episódios está disponível no índice do podcast. O feed RSS é https://folha.libsyn.com/rss.

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