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'O Cinema que Não se Vê' resume as idas e vindas da indústria nacional

Livro de Ana Paula Sousa destrincha a história da política cinematográfica brasileira e seus acidentes no século 21

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São Paulo

O livro "O Cinema que Não Se Vê" trata de quase todo o cinema, isto é, da rica trama que se desenvolve não atrás das câmeras, mas dentro de escritórios, nos encontros diplomáticos, nas assembleias de classe. Em outras palavras, isso que se chama de política cinematográfica.

A expressão é um tanto brutal, vamos admitir. É ali que a arte pura do cinema se mistura à arte tão impura da negociação. Por muito tempo a ideia de política cinematográfica soou como um grito de guerra de gente sem competência para fazer um dito verdadeiro cinema.

Paulo Gustavo, Mariana Xavier e Rodrigo Pandolfo em cena do filme 'Minha Mãe É uma Peça 3' - Daniel Chiacos/Divulgação

É um equívoco. A política cinematográfica vigora desde que o cinema existe. Foi assim quando, nos Estados Unidos, o truste —quer dizer, as empresas que detinham patentes industriais (câmeras, negativo, projetor)— entrou em guerra com os "independentes" (que pirateavam esses bens para fabricar seus próprios produtos).

Foi assim quando, terminada a guerra das patentes, os americanos se uniram para expulsar os franceses, que até o começo dos anos 1910 dominavam o mercado local.

Foi assim quando o Estado alemão investiu na criação da poderosa UFA, ou quando Benito Mussolini proclamou que "o cinema é a arma mais forte", ou quando a França criou o seu CNC. Proteção à arte local —foi assim sempre, e no Brasil não foi diferente. Ou antes, no Brasil sempre as coisas são um pouco mais complicadas.

O objetivo do precioso livro da jornalista e pesquisadora Ana Paula Sousa é passar a limpo essa complexa história em que cinema e Estado ora se digladiam, ora discutem, ora ensaiam parceria no Brasil. De certa forma, é uma demonstração, sob a forma original de uma tese de doutorado em sociologia na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, de que esse subterrâneo invisível do cinema determina em grande medida aquilo que chega às telas.

O volume retraça e resume os por vezes nem tão delicados conflitos do século passado —do primeiro congresso de profissionais, em 1952, à criação do Instituto Nacional de Cinema, já na ditadura, à Embrafilme, concluída em meados da década de 1970, até o seu fechamento, no primeiro dia do governo Collor.

Dez anos difíceis se seguiram, até chegarmos ao século 21, que é afinal o assunto do livro. Novamente, foi um congresso que detonou a reivindicação por um órgão estatal implicado na produção de cinema e a série de mudanças que marcou os governos Lula.

Desta vez, não se agitavam tanto argumentos em torno da cultura ou mesmo da "soberania nacional" quanto o que o filme brasileiro poderia economizar em divisas e gerar em empregos. Isso passava pelo restabelecimento das cotas de tela e, claro, do fim da rivalidade eterna entre cinema e TV.

Com o surgimento da Ancine, a Globo, até então eterna rival, entrou na produção e, sobretudo, na distribuição de filmes brasileiros. Isso não aconteceu sem atribulações.

Estou aqui resumindo mal e porcamente o que foi uma longa batalha. Sousa, a autora, reproduz expressões no texto apresentado ao Congresso (o Nacional, não o de cinema) por um senador, em 2011 —"chavismo", "doutrinação audiovisual", "dirigismo cultural", "xenofobia" etc.

Um evidente exagero se levarmos em conta a série de comédias românticas, quase sempre anódinas, porém de enorme sucesso, lançadas no período. Em todo caso, ilustra bem a força com que incide "o que não se vê" sobre "o que se vê".

O arranjo funcionou bem, com essa produção de alto consumo ajudando a financiar um cinema "de prestígio" que se mostrou bastante inventivo nesse período, culminando com a premiação de "Bacurau" no Festival de Cannes, em 2019.

Já em meados dos anos 2010, no entanto, um novo e perturbador elemento surgiu, o streaming. Sendo novo, escapava de toda regulamentação. Como o Ministério da Cultura não tomou qualquer providência durante o governo Temer e como a providência do governo seguinte foi extinguir o Ministério da Cultura, as fontes de financiamento minguaram. Com elas, sumiram os filmes de grande consumo. Sobrou uma atividade de sobrevivência, feita de pequenas produções e dos filmes patrocinados basicamente pela Netflix.

A morte de Paulo Gustavo, o comediante de maior sucesso neste século, durante a pandemia de Covid-19, talvez seja o signo mais eloquente do final desse momento muito favorável ao desenvolvimento do filme nacional. Seu "Minha Mãe É Uma Peça 2", de 2016, figura em segundo lugar na lista dos principais blockbusters nacionais dos últimos anos.

E, atenção, 2016 já era um ano de decadência. Como assinala a autora, "em 2010, 43 filmes ficaram na faixa de até 10 mil espectadores, em 2011, esse número já era de 61 títulos; em 2016, 97 filmes venderam menos de 10 mil ingressos nos cinemas".

Os filmes ditos "médios" —autorais, porém com apelo de público— que chegaram a quase 700 mil espectadores no começo deste século (caso de "O Homem que Copiava", de Jorge Furtado), minguaram com o tempo.

Na década seguinte, filmes que tiveram inclusive presença forte em festivais internacionais, como "Aquarius", de Kleber Mendonça Filho (358 mil espectadores), ou "Que Horas Ela Volta?", de Anna Muylaert (478 mil), não chegaram nem sequer a 500 mil ingressos vendidos.

As interpretações expostas para essa baixa de audiência são várias. Podemos botar a culpa nos filmes brasileiros de pouco apelo ou no imperialismo cultural, à vontade. O fato é que, com o governo Bolsonaro, a Ancine perdeu força como agência de fomento. Com a pandemia, mudaram hábitos de consumo. Com a crise econômica, o dinheiro para ir ao cinema diminuiu.

Com o novo governo, abre-se a possibilidade de voltar a essas questões de infraestrutura, a um novo pacto cinema-Estado. Ainda assim, estaremos diante de uma crise que não depende apenas desse pacto, mas da volta à frequência das salas (abalada desde o retorno da pandemia) e da força que, no momento recente, ganhou o streaming.

Tudo isso, no entanto, torna ainda mais importante, para quem tem a ver com o audiovisual, conhecer melhor a história tão bem contada neste livro.

O Cinema que Não Se Vê

  • Preço R$ 64,90 (278 págs.)
  • Autoria Ana Paula Sousa
  • Editora Fino Traço
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