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Artistas são cronicamente insatisfeitos, diz autor premiado Rafael Gallo

Escritor venceu o troféu José Saramago com o romance 'Dor Fantasma', sobre gênio da música que lembra 'Tár'

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Bruna Meneguetti
São Paulo

A música "Rondeau Fantastique", composta pelo austríaco Franz Liszt (1811-1886) e que poucos pianistas foram capazes de tocar devido à extrema dificuldade, é o ponto de partida do livro vencedor do mais recente Prêmio Saramago, "Dor Fantasma", de Rafael Gallo.

homem branco de cabelo comprido sentado em escada
O escritor Rafael Gallo, premiado pelo romance 'Dor Fantasma' - Wilian Olivato

Embora seja seu primeiro reconhecimento internacional, o autor já havia sido laureado no Brasil pelo prêmio São Paulo de Literatura, com seu romance "Rebentar", e pelo Prêmio Sesc de Literatura, com o livro de contos "Réveillon e Outros Dias".

A trama de "Dor Fantasma" é trazida sempre a partir do ponto vista de Rômulo Castelo, um pianista fictício tido como um dos maiores intérpretes de Liszt. Rômulo espera sua turnê europeia para tocar "Rondeau Fantastique" e poder trazer essa "música que deixou de ser ouvida, de estar no mundo". "E só vai voltar a existir quando alguém conseguir tocá-la de novo."

Sem gravá-la ou deixar que alguém a escute, o protagonista ensaia a composição em segredo todos os dias, cobrando-se para que esteja perfeita. "A insatisfação do artista é crônica, é inescapável. Sempre está dando um passo à frente. Mas a perfeição, de saída, é fadada ao fracasso", afirma o autor, que compara a obsessão de Rômulo à do capitão Ahab, do livro "Moby Dick", de Herman Melville.

O fluxo de pensamentos ao redor de um único personagem e sua desmontagem humana lembram igualmente "A Paixão Segundo G.H.", de Clarice Lispector. Tanta fixação e rigidez em "Dor Fantasma" não irão se restringir apenas à música, mas a toda a vida do pianista, que é um professor universitário incapaz de lidar com as imperfeições de seus alunos e as de seu filho, nascido com paralisia cerebral.

Em uma sociedade em que a perfeição é cultuada, principalmente nas redes sociais, e em que qualquer erro pode ser massacrante, Gallo é bem-sucedido ao retratar um músico que busca a excelência, mas comete tanto falhas ingênuas quanto indefensáveis, tal como a personagem encenada pela atriz Cate Blanchett no filme "Tár".

"Dor Fantasma" retrata a derrocada do ser humano em sua busca obsessiva, mas em um personagem carregado de ideias machistas, capacitistas e egocêntricas.

"Acho que tem uma cultura geral, reforçada pelas próprias histórias, religiões e moralismos, em que ficamos esperando que as pessoas sejam boas. As histórias reforçam isso porque o caos, o mal é ameaçador", afirma o autor.

É justamente a essa esperança que o leitor se apega. Rômulo tem várias oportunidades de exercer a aceitação da alteridade e do que é imperfeito, em especial a partir do momento em que perde a mão direita em um acidente —algo já anunciado na premissa da obra. Neste ponto de virada, a dor sentida no membro fantasma passa a ser um reflexo do sofrimento psicológico do personagem, incapaz de assimilar que nem tudo é alcançado apenas com esforço —como o discurso da meritocracia, que Rômulo encampa, faz acreditar.

Por outro lado, a capacidade subitamente perdida de tocar "Rondeau Fantastique" é uma metáfora possível para o Brasil e até mesmo para Portugal que, segundo Gallo, seriam dois países que não gostam de si mesmos. "Portugal tem nostalgia do que ele era: uma grande potência que entrou em declínio. Já o Brasil tem uma nostalgia do que não chegou a ser. O famoso país do futuro."

Dessa forma, embora "Dor Fantasma" não traga temáticas em voga na literatura brasileira, é possível captar o tal complexo de vira-latas de forma explícita. "Rômulo repara nas linhas negras das suturas, trópicos inscritos diretamente na pele. Jamais teria sido atropelado de forma tão vulgar se estivesse em um país desenvolvido. Se vivesse na Europa. É avassaladora a desordem dessa cidade, dessa nação", relata o narrador.

A dedicação do protagonista em contraposição a sua perda é tão grande que o leitor passa a sentir também uma dor fantasma em relação a tudo que lhe é impossibilitado. "Estar à margem de qualquer coisa te traz uma sensação de limitação, de que você não tem poder sobre as coisas, de que está mais sujeito aos poderes alheios do que à própria potencialidade", afirma Gallo.

Nesse sentido, "Dor Fantasma" mostra que é possível abordar aspectos inerentes ao Brasil sem se render a estereótipos comerciais da literatura nacional. "Não existe um Brasil só. É um erro falar que quem escreve algo típico do Norte e do Nordeste é regionalista. Então, às vezes se cai nesse erro de achar que a história de um pianista de música clássica é menos brasileira do que outras."

Dor Fantasma

  • Preço R$ 59,90 (352 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Rafael Gallo
  • Editora Globo Livros
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