Descrição de chapéu
Livros

Antologia revela como ficção científica virou palco do feminismo

'Irmãs da Revolução' mostra influência de autoras como Ursula Le Guin e Alice Sheldon sobre a literatura e a política

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

André Araujo

Irmãs da Revolução

  • Preço R$ 129,90 (536 págs.)
  • Autoria Ann e Jeff VanderMeer (orgs.)
  • Editora Aleph
  • Tradução Marcia Men

Organizada por Ann e Jeff VanderMeer, a coletânea "Irmãs da Revolução" carrega uma grande responsabilidade: é uma antologia de ficção especulativa feminista, que ilustra por que a ficção científica se tornou um dos mais profícuos e relevantes palcos para a imaginação política nos últimos anos.

A publicação desse livro no Brasil em 2023 não poderia ser mais apropriada. A coletânea de 30 contos é uma excelente porta de entrada para conhecer as diversas modalidades assumidas pela ficção especulativa —termo guarda-chuva que abarca gêneros como a ficção científica, fantasia e horror— ao mesmo tempo em que ajuda a contextualizar a recente explosão desse tipo de literatura escrita, sobretudo, por mulheres.

capa de livro verde clara
Detalhe da capa do livro 'Irmãs da Revolução', de ficção especulativa feminista - Divulgação

O modo como entendemos a ficção científica hoje está diretamente relacionado à revolução ocorrida no gênero entre os anos 1960 e 1970, protagonizada por escritoras mulheres comprometidas com uma perspectiva feminista.

Autoras como Joanna Russ, Alice Sheldon e Ursula K. Le Guin não apenas foram vozes pioneiras em um campo antes dominado por homens como também desafiaram convenções literárias até então hegemônicas: histórias sobre heróis, conquistas e dominações, sejam de planetas, robôs ou alienígenas.

Ao romper com essa tradição, elas politizaram os temas e reestruturaram a forma, abrindo um gênero até então marginalizado para uma imaginação engajada política e literariamente.

Para além do mundo propriamente literário, é inegável a influência dessa geração sobre os movimentos da segunda e terceira ondas do feminismo, assim como sobre pensadoras contemporâneas como Donna Haraway, Vinciane Despret, Isabelle Stengers e Anna Tsing, cujas obras recém-publicadas no Brasil vêm recebendo atenção da crítica.

Os contos selecionados não são agrupados de forma cronológica, mas temática, o que ajuda a observar a continuidade entre as autoras fundadoras dessa corrente e as gerações mais recentes. Vemos como clássicos da ficção científica —histórias de invasão alienígena, viagem no tempo e visita a outros planetas— podem ser ativadas politicamente tendo em vista as opressões de gênero.

Também deparamos com pontos de vista que ampliam o escopo da especulação, como jogos com tradições orais e mitológicas, dramas familiares, questionamentos sobre dinâmicas de poder e desconfiança quanto à ideia do progresso técnico científico.

Infelizmente, a coletânea peca por ser excessivamente centrada em autoras dos Estados Unidos. Ann e Jeff VanderMeer justificam essa escolha por seu foco nas décadas de 1970, 1980 e 1990, quando talvez a explosão de autorias fora do eixo primeiro-mundista ainda não fosse tão aparente. A Aleph, portanto, acerta ao mitigar o anglocentrismo com a inclusão de um conto inédito da brasileira Aline Valek.

O grande destaque da antologia são os contos, já clássicos, responsáveis por redefinir o que entendemos por ficção científica —entre eles o de Alice Sheldon (sob o pseudônimo James Tiptree Jr.) sobre uma invasão de alienígenas que usam a opressão de gênero como gatilho de destruição da humanidade; o de Ursula K. Le Guin que conta a história de uma expedição secreta de mulheres sul-americanas para a Antártida; e o de Joanna Russ que trata de uma comunidade utópica de mulheres, num futuro longínquo, que pela primeira vez encontra homens.

Os contos mais singulares talvez sejam os que destoam da tradição mais usual da ficção especulativa, como os de Angela Carter, Nalo Hopkinson, Angélica Gorodischer e Leonora Carrington, que tomam os caminhos do surrealismo poético e da ficção histórica para construir tramas violentas e atuais.

"Irmãs da Revolução" é uma publicação ao mesmo tempo preciosa para quem se inicia no universo da ficção científica e incontornável para pessoas já versadas no gênero.

Apesar de sua variedade, a coletânea mantém um nível de excelência constante, deixando claros os motivos pelos quais a ficção especulativa se tornou uma das principais ferramentas de resistência em tempos sombrios.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.