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Segredo de João Donato para encantar com seu piano era a simplicidade

Nascido no Acre, compositor dialogou com diferentes gerações de brasileiros, japoneses, cubanos, americanos e europeus

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Lucas Nobile
São Paulo

Assim como João Gilberto, de quem foi grande amigo, João Donato está acima de qualquer rótulo. É muito maior do que a bossa nova. Tal qual Maradona e Sócrates, que estão acima do futebol, de times de coração e de clubismos, Donato é maior do que movimentos, gêneros, estilos e modismos.

Donato, morto aos 88 anos nesta segunda-feira (17), fez parte de uma turma que em meados dos anos 1950 antecipou muita coisa quase tudo em termos de harmonia e que só veio a aparecer ao grande público com a bossa nova.

Ao lado de Garoto, Johnny Alf, Valzinho, Zé Menezes, Chiquinho do Acordeon, Radamés Gnattali e outros craques, ele integrou um time de modernizadores da música brasileira com muito menos crédito do que mereciam.

João Donato no palco do Rock in Rio em 2017
João Donato no palco do Rock in Rio em 2017 - Ricardo Borges/Folhapress

O fato de Donato ter nascido no Acre fez com que sua música soasse bem diferente da que era feita no eixo fonográfico Rio–São Paulo. A proximidade geográfica com a América Central e com o Caribe fez com que a arte de Donato dialogasse com a música cubana com extrema naturalidade. Ele gravou um DVD em Havana com músicos locais, como o pianista Chucho Valdés, a quem Donato pôde dizer que Bebo Valdés, pai de Chucho, foi uma de suas grandes referências.

Havia também diálogo com a música americana. Afinal, basta ouvir os álbuns que ele gravou nos Estados Unidos em diferentes períodos, como "Bud Shank/Donato/Rosinha de Valença", de 1965, "A Bad Donato", lançado em 1970, e "Donato Deodato", que saiu três anos depois.

Donato foi abraçado pela geração da bossa nova, mas também pelos tropicalistas, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, com os quais fez parcerias. Se enturmou com os injustamente chamados de "malditos", como Luiz Melodia e Jards Macalé, com quem lançou recentemente "Síntese do Lance".

Foi atraído pelos sambistas, como Martinho da Vila e Dona Ivone Lara, e incensado pelas gerações mais novas, de Marcelo D2 a Marisa Monte, de Céu a Tulipa Ruiz e Anelis Assumpção, de Orquestra Imperial a Bixiga 70.

Embora não fosse um pianista virtuose, gravou com os instrumentistas mais respeitados do país, como Paulo Moura, Rosinha de Valença, Dom Salvador e Raul de Souza. Seu piano era econômico em notas, mas tinha um balanço que poucos tinham, no Brasil e no mundo.

Com João Gilberto, Donato compartilhou da mesma visão de mundo e de música. Ambos criaram juntos canções tão simples quanto atemporais como "Minha saudade", uma das raras composições assinadas por João Gilberto.

Outra delas seria o baião mântrico-hipnótico "Undiú", creditado apenas ao João de Juazeiro no famoso "álbum branco" de 1973. De forma doce, debochada e desapegada, Donato contou sua versão sobre a origem e os créditos da composição em gravação do programa "MPB Especial", da TV Cultura.

"Fiz essa música e a toquei para Roberto Menescal. Ele disse: ‘essa música não é do João Gilberto?’". Ao que Donato respondeu, entre risos: "Não, ele tem uma igualzinha".

Assim funcionavam as cabeças dos dois amigos e parceiros geniais. Entre o acender e o apagar de baseados da melhor qualidade, compuseram poucas mas inesquecíveis obras-primas. Depois de prontas, eles as jogavam no mundo, sem se apegar a formalidades sobre quem havia composto de fato.

Donato mudou-se para os Estados Unidos na década de 1960, sob o argumento de que as harmonias de seu piano eram incompreendidas e que era pouco aceito pelo mercado brasileiro.

Retornou ao Brasil, mas até os anos mais recentes sua música seguiu atraindo convites de gravadoras de países como Japão, Inglaterra e Estados Unidos. Felizmente, quase tudo pode ser ouvido nas plataformas digitais de áudio.

Fosse no piano, fosse nas ideias expressadas por suas composições, Donato foi daqueles músicos capazes de, em poucos compassos, imprimir uma assinatura. Logo o ouvinte sabe que é João Donato quem está tocando.

Nos teclados, rhodes ou sintetizadores, ele parecia estar num parque de diversões. Com sorriso de orelha à orelha, lembrava o mesmo menino que teve no acordeon o seu primeiro instrumento musical.

Uma cabeça abertíssima a descobrir, investigar e encontrar novos timbres e efeitos que casassem à perfeição tanto com a levada da mão esquerda quanto com os fraseados da mão direita.

Dialogando com qualquer estética ou formação instrumental, a chave de Donato para o encantamento estava no oposto ao rebuscamento, ou seja, na simplicidade.

Um pianista, arranjador e compositor que despontou nos anos 1950 e, aos 88 anos, mantinha um frescor de ideias que fazia dele mais moderno do que muitas gerações que o sucederam.

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