Descrição de chapéu Zé Celso

Zé Celso pedia socorro, com fagulhas na sua roupa, diz ator que vivia com ele

Victor Rosa, do Teatro Oficina, morava com dramaturgo e narra como ajudou a retirá-lo de seu apartamento em chamas

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São Paulo

Em 2018, Victor Rosa varria a passarela do Teatro Oficina antes de uma apresentação da peça "Roda Viva", encenada pela primeira vez havia 50 anos. "Você gosta muito de teatro, né?", perguntou José Celso Martinez Corrêa ao chegar à sede da companhia que ajudou a fundar, em 1958. "Gosto, gosto muito", respondeu o rapaz.

Na noite da quinta-feira (6), Rosa, de 23 anos, tentou pegar em uma das vassouras para ajudar a limpar a pista, que receberia o corpo do dramaturgo, morto aos 86 anos na manhã daquele dia. Sentiu-se, então impossibilitado pela ardência nas mãos, ambas envolvidas por curativos. Rosa havia ajudado Zé Celso a fugir do apartamento em que moravam, no Paraíso, na zona sul de São Paulo, consumido por um incêndio dois dias antes.

Zé Celso, criador do Teatro Oficina, em ensaio para a revista Serafina de outubro de 2016
Zé Celso, criador do Teatro Oficina, em ensaio para a revista Serafina de outubro de 2016 - Daniel Kaljmic

Natural de Guarulhos, Rosa é filho de um engenheiro, morto durante a pandemia, e de uma massoterapeuta. Chegou a trabalhar como recepcionista numa academia para conciliar os estudos de teatro. No Oficina, participou das montagens de "O Rei da Vela", "Godot", "Bailado do Deus Morto" e está em cartaz em "Mutações de Apoteose".

Na primeira apresentação da peça depois da morte de Zé Celso, Rosa esperou todos irem embora para ficar sozinho no Oficina e prestar este depoimento à Folha, em que rememora os horrores do incêndio, a angústia no hospital e os momentos de luta e celebração no velório do maior dramaturgo da história do teatro brasileiro.

Naquela segunda-feira, dia 3, segui minha rotina normalmente. Acordei, nem vi Zé e fui fazer uns exames de rotina. Às 16h, cheguei ao Oficina, onde fui acompanhar uma equipe de filmagens que faria gravações no prédio. O trabalho demorou muito e só fui voltar para casa de madrugada, às 3h. Dei uma espiada no quarto do Zé, ele estava se preparando para dormir como sempre fazia.

Desde 2021, morava com Zé, o marido dele, Marcelo Drummond e o ator Ricardo Bittencourt. Zé havia me pedido para trabalhar, organizando o acervo pessoal dele. São dois apartamentos conjugados, o 62 e o 63. Na prática, é o mesmo imóvel, não há divisória. Eu morava para o lado do 63, o mesmo do Zé, num quartinho dos fundos. Ali, havia o escritório, o quarto e o banheiro dele. No alto do corredor, havia uma pilha de escritos do acervo. Marcelo e Ricardo ficavam no 62, em cômodos um pouco mais afastados.

O ator Victor Rosa deitado ao lado do dramaturgo Zé Celso
O ator Victor Rosa deitado ao lado do dramaturgo Zé Celso - Reprodução

Acordei com Zé gritando socorro. Acho que era umas 8h. Todos nós já havíamos o alertado sobre o perigo do aquecedor. Era um hábito antigo que ele tinha, porque era muito friorento. Às vezes, me pedia para ligar o aparelho e deixar bem pertinho dele. Eu até perguntava se não era perigoso. Mas ele insistia.

Quando entrei no quarto dele, não enxergava nada. Vi a silhueta dele tentando sair do cômodo com a ajuda do andador. Nesse momento, vi algumas fagulhas pela roupa dele. Gritei socorro para os meninos e fui tentando sair com ele para o corredor. Os pés dele estavam com fogo. Queimei as minhas mãos tentando agarrar o corpo dele. Ele tirou as mãos do andador e fomos ao chão, na tentativa de escapar da fumaça. Zé estava lúcido e consciente durante todo esse momento.

Foi aí que Marcelo veio, ele abriu todas as janelas e portas. Ele me olhava tentando entender o que estava acontecendo. De repente, ele passou mal. Ainda não tinha visto Ricardo. Lurdinha, que trabalha no andar de baixo, no apartamento das irmãs do Zé, Ana e Lala, subiu para o nosso andar. Ela tinha sentido um cheiro de queimado. Achou que eu tinha esquecido alguma comida na panela. Marcelo também achava que o cheiro era da cozinha.

Lurdinha acolheu Marcelo, enquanto continuava a arrastar Zé. Um vizinho, que nem sei o nome, também chegou para nos socorrer. Eu e esse vizinho abraçamos Zé e o carregamos até a sala. Ele ficou gritando "abre a janela! abre a janela!", e Marcelo já tinha aberto tudo. O fogo estava avançando, mas conseguimos ir para o hall.

Zé viu que Marcelo estava mal e disse "me dá a mão, agora me dá a outra". Os dois se aninharam no hall. Ali, eu chorei horrores. Mas eu voltei a entrar no apartamento, comecei a chamar o nome do Nagô, o nosso cachorrinho. E ele não respondia. Não sabia onde ele estava. Também procurei Ricardo. Como o quarto dele estava vazio, achei que já não estivesse mais em casa.

Depois, eu o encontrei no hall, muito perplexo. Fiquei preocupado com a rapidez do fogo. Peguei um extintor e tentei apagar as chamas, totalmente às cegas. Marcelo me ajudou, acionando outro aparelho. Vi que o fogo estava subindo pelo teto do corredor do Zé, onde ficam os escritos dele. Foi aí que ouvimos as sirenes.

Zé saiu do prédio carregado por uma dupla de bombeiros. Ricardo também saiu logo. Um dos bombeiros me perguntou onde poderia encontrar outros extintores. Avisei que havia extintores nos andares de baixo e ajudei a buscar. Aí eles entraram com a mangueira em ação. Disseram para Marcelo e eu "desçam, que agora a gente cuida".

Lá fora, tinha um mundaréu de gente. Eu virei para o Marcelo e perguntei "você viu o Nagô?". Chorei muito na calçada. Umas placas começaram a cair do prédio, nós olhamos para cima. O bombeiro disse "saiam daí, que a janela vai cair". Era a janela do quarto do Zé. Subimos para a casa da Beatriz, sobrinha dele, que morava ali pertinho. Minhas mãos já ardiam muito.

Foi aí que soubemos que Zé tinha sido levado para o Hospital das Clínicas. Descemos de novo e fomos examinados. Quando a porta da ambulância ia se fechar para nos levar à UPA, os bombeiros vieram com Nagô. Ele pulou na ambulância, me lambeu, lambeu Ricardo. Uma das brigadistas chamou Nagô para sair, e a gente disse "não!".

Na UPA, eu e Marcelo descobrimos que estávamos com Covid-19. Estávamos assintomáticos. Na sequência fomos encaminhados ao Hospital São Paulo. Lá, ficamos isolados de Ricardo. Tínhamos notícias de Zé, porque a enfermeira pegava informações com ele, o único que tinha celular. Estávamos completamente alienados. Até a TV do nosso quarto estava queimada.

Minha mãe veio me visitar na quarta-feira. Ela me viu pelo vidro e estava muito chorosa. À noite, sonhei muito com Zé, o rosto dele, eu dando a mão para ajudá-lo. No dia seguinte, acordamos para tomar os nossos remédios. Nesse momento, já tínhamos celular. O aparelho de Marcelo tocou. Era Luciana Domschke, médica e atriz do Oficina. Ela comunicou a morte de Zé de um modo muito especial.

Eu me levantei e fiquei abraçado com Marcelo, chorando ao pé de sua cama. Tivemos alta e voltamos para o apartamento. Cada um queria pegar algum pertence seu. De lá, fomos rapidamente para o teatro. Em pouco tempo, o Oficina já estava cheio, se preparando para o rito que celebraríamos.

Primeiro, o corpo ficou isolado no jardim, para nós da companhia e a família. Nesse momento, fiquei numa estrutura elevada, deitado, admirando Zé, quase do ladinho dele. É uma admiração muito grande. Assisti a uma peça do Oficina, pela primeira vez, em 2017. Era a montagem de "As Bacantes". Participei de tudo, entrei na orgia, beijei, bebi vinho. Estava trabalhando na Companhia Satyros, onde fiz um curso. Naquela época, trabalhava como recepcionista de uma academia e vivia um certo nomadismo pelo Bexiga.

Aprendi a fazer teatro fazendo. Em 2018, comecei no Oficina ajudando a costurar a roupa do coro de "O Rei da Vela". E fui ficando. Minha primeira atuação foi na própria peça, quando criei uma cena para mim. Nela, ficava quase todo nu, com o pau meio para fora. Nesse dia, Zé mandou me chamar. Achei que seria demitido, mas ele disse "eu adorei!".

Como sempre trabalho de cuecas no teatro, ele ficou me chamando, desde então, de Caravaggio, o pintor italiano. As peças terminavam tarde, então dormia com frequência na casa de Zé. Morar com ele era uma alegria e uma anarquia, com horários muito doidos. Lembro de conviver durante a eleição, de ir a Brasília na posse e depois contar tudo o que vi para ele. Tinha muito disso: eu ia nos lugares e contava para ele.

Eu participei dos primeiros trabalhos de "A Queda do Céu". A gente assistia a muitos filmes. Zé era apaixonado por Orson Welles. Também viu Glauber Rocha comigo. Nos últimos tempos, insistia para que eu assistisse a "Teorema", filme do Pasolini que ele mais gostava.

Agora tem uma importância gigantesca a luta pelo terreno na Justiça, contra o Grupo Silvio Santos. Aquele terreno é uma floresta. Temos de nos unir para fazer acontecer. No momento, moro com Ricardo e Marcelo novamente, num apartamento provisório descolado pelo Oficina.

Zé me mostrou todas as possibilidades, me abriu para os cogumelos e a maconha.Teve um dia que, do nada, ele perguntou: "vamos tomar sopa vietnamita?". Eu disse: "vamos!". Tínhamos fumado um beque antes da refeição. A sopa era apimentada. Ficamos muito doidos. As pessoas me olharam no velório, e eu me senti um fantasma. Existia a possibilidade que eu morresse. Ficavam me dizendo que eu salvei o Zé, mas o Zé salvou tanta gente.

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