Mostra bate recorde de obras de artistas negros reunidas para mostrar força do grupo

Inaugurada no Sesc Belenzinho, 'Dos Brasis' reúne 240 artistas brasileiros, de mestres do século 19 até nomes em ascensão

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São Paulo

Um piso de vidro sustenta obras de dois metros de altura, a um andar de uma grande piscina. Com bases espelhadas, as enormes esculturas de madeira e metal parecem flutuar sobre a água, que relativiza seu peso.

'A Preparação das Meninas' (1972), de Maria Auxiliadora
'A Preparação das Meninas' (1972), de Maria Auxiliadora - Coleção Maria Cecília e Michel Gorski

Compondo a cena com ar de fantasia, está "Baobá", de Emanoel Araújo, artista morto em setembro e fundador do Museu Afro-Brasil em 2004. Retalhos geométricos pretos formam a figura abstraída da árvore simbólica para muitos países africanos.

Um pouco mais à frente, está o par de garças em metal de Mestre Valentim, um dos principais escultores do Brasil colonial, residentes no Jardim Botânico do Rio de Janeiro na virada do século 20.

A mistura geracional de artistas é um dos princípios da exposição "Dos Brasis: Arte e Pensamento Negro", que abre nesta quarta-feira (2) no Sesc Belenzinho, mais abrangente exposição dedicada à produção de artistas negros contemporâneos do país.

A mostra supera em 26 artistas a mostra "Histórias Afro-Atlânticas", organizada pelo Masp em 2018, que se tornou um marco no meio artístico brasileiro por ampliar as perspectivas para a arte negra e não europeia.

A nova exposição é fruto de uma pesquisa feita pelos curadores Igor Simões, Lorraine Mendes e Marcelo Campos, durante três anos de viagens pelo Brasil.

Pouco antes de "Baobá", são exibidos cartazes de "A Mão Afro-Brasileira", grande exposição voltada para a produção de artistas afro-brasileiros criada por Emanuel Araújo em 1988.

Apesar de contar com obras do século 19 até o atual, a mostra não é organizada em ordem cronológica, mas por "constelações", sete no total, como diz a curadora Lorraine Mendes. "Cada núcleo é associado a filosofia de um pensador negro brasileiro".

"Legítima Defesa", por exemplo, é um núcleo dedicado a uma frase atribuída ao advogado Luís Gama, que viveu no século 19 antes do fim da escravidão. "Todo escravo que mata o seu senhor age em legítima defesa". Dividem o espaço obras que enfrentam o sistema político-cultural que exclui pessoas negras do campo da arte.

"Projeto de Curar o Entorno", de 2022, por exemplo, traz uma série de placas e avisos das ruas do subúrbio de Salvador, com dizeres como "Temos almoço todos os dias, servimos quentinha" e "vende-se geladão", aglomeradas em torno de um desenho enorme do machado de duas lâminas —ferramenta de Xangô, orixá da justiça.

A obra faz parte do Acervo da Laje, organização cultural e museu formado na periferia da capital baiana que busca colecionar obras de artistas periféricos da cidade.

"Nunca existiu silêncio ou invisibilidade de artistas negros. O que acontece é uma escuta seletiva na história da arte", diz Igor Simões, também curador, referindo-se a escolha de não incluir nomes de artistas negros a movimentos artísticos de vanguarda.

Como exemplo, Simões cita a troca de cartas entre Mestre Didi, Rubens Valentim e Abdias Nascimento, a convivência intensa de José Barbosa com Hélio Oiticica ou a produção de bordados hipercoloridos de Maria Auxiliadora, que retratam cenas cotidianas —todos os artistas presentes na mostra.

"A Maria Auxiliadora poderia ter sido considerada uma artista pop, uma precursora da body art, mas houve uma escolha. Ela foi colocada na categoria da arte popular e espontânea. Se tem uma coisa que não existe nesses trabalhos é falta de domínio da técnica. Ao longo da história da arte brasileira, a produção de pretos pobres foi considerada sempre arte popular", diz Simões.

"A arte negra foi considerada, por muito tempo, como naif, ingênua", diz a artista plástica Rosana Paulino que, com 30 anos de carreira e passagem pela Bienal de Veneza, participará pela primeira vez da Bienal de São Paulo neste ano.

"Geometria à Brasileira", obra de uma de suas séries mais famosas, está na mostra após voltar do exterior. Várias telas são agrupadas de forma não linear para formar um painel e, sobre elas, são pintadas formas geométricas em cores fortes que remetem ao clima tropical, mescladas a fotos antigas de pessoas negras e iconografias da fauna e da flora brasileiras.

Quando fez o trabalho, Paulino queria discutir a "suposta vocação geométrica", defendida pelos construtivistas brasileiros do século 20. "Existia uma corrente internacional pensando a arte geométrica. Mas quando ela chega aqui, esses artistas se informaram se já existia o desenvolvimento de alguma tendência geométrica? Será que eles olharam pras cores e pra população brasileira?"

O outro trabalho de Paulino exposto é um estudo de grandes proporções. Raízes parecem brotar do corpo de uma mulher negra, desenhada com grafite sobre papel. A artista comemora a seleção. "É bom para mostrar que a arte é fruto de muito trabalho. Existe um grupo de artistas e curadores muito bem formados que trazem a possibilidade de um olhar mais aprofundado sobre o Brasil", diz.

Seus trabalhos estão próximos de "Emblema-Logotipo Poético de Cultura Afro-Brasileira – n° 8", de 1976, de Rubem Valentim, referência do construtivismo no país, e de "Orixá Hermafrodita", de 1969, de Abdias Nascimento, em que a figura da entidade é retratada apenas com um seio, de forma quase abstrata.

Um retrato enorme de Rosana Paulino, pintado pela carioca Panmela Castro, divide uma parede com o retrato a óleo da escritora Conceição Evaristo, em pinceladas cuidadosas, sobre um tecido aveludado. O artista Marcel Diogo parece dar carinho a pessoas associadas a alguma luta.

Ao lado, está uma escultura de Judith Bacci, "Mãe Preta Amamentando Menino Branco", de 1988. Escultora, trabalhou como zeladora da Escola de Belas Artes do Rio Grande do Sul. "Ela influenciou uma geração de escultores, mas ficou conhecida como tia Judith", conta o curador Igor Simões.

Pouco a frente, divide o espaço com a obra de Bacci a escultura elétrica do jovem artista Renan Soares. Um cavalo imenso, coberto por uma pelagem preta de plástico, parece o vulto de um animal que cavalga no ar, "A estátua equestre é recorrente na história da arte, ligada a monumentos de cavaleiros e heróis nacionais europeus. Esse grande vulto representa a história não contada", afirma o artista.

Obras que retratam a vida cotidiana também marcam presença na exposição. Exemplo é "Santo", de Miguel Afa, que pinta seu tio descendo as escadas na comunidade do Alemão, no Rio de Janeiro.

No núcleo "Negro-Vida", inspirado na teoria do sociólogo Guerreiro Ramos, de que as experiências da pessoa negra, como humana que é, são diversas e não podem ser resumidas em perspectivas unificadoras, um quadro de Marcelo Siqueira se diferencia pelos materiais de criação.

"Ele é uma espécie de guardião da Serra do Cipó, em Minas Gerais", diz a curadora Lorraine. Caminhando pela paisagem, o artista colhe pedras, madeira e plantas, para transformar o material em pigmento natural que usa para criar os tons vivos de suas obras.

Dos Brasis: Arte e Pensamento Negro

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