ArtRio hedonista reflete o otimismo que tomou o mercado de arte brasileiro

Feira carioca realizada no rastro da SP-Arte e da Bienal de São Paulo reforça sensação de que o país voltou ao mapa

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Rio de Janeiro

Ele se sentia o cara. Já sem camisa àquela hora da noite, equilibrado no alto de um banquinho na sala ampla de seu apartamento no bairro carioca do Leme, com uma vista estratégica para o mar, o artista Ernesto Neto parecia querer mesmo gritar "Rio de Janeiro is back", em bom inglês calibrado pelas caipirinhas fresquíssimas de limão saindo do bar com o rugir das ondas do Atlântico ao fundo, uma sensação de esperança açucarada.

Obra sem título de Grauben do Monte Lima (1970)
Obra sem título de Grauben do Monte Lima (1970) - Divulgação

Os artistas arrebanhados ao redor, a nata das artes visuais cariocas, das veteranas Adriana Varejão e Laura Lima ao novato Bastardo, pareciam todos concordar com o anfitrião.

Depois de anos de pandemia e mal-estar, esta parece ser a "saison" em que mais se misturam línguas e otimismos no balneário mais lindo do planeta. O sol voltou —mesmo— a brilhar na zona sul do Rio e em boa parte de uma cena artística no Brasil castigada nos últimos anos por intempéries de toda sorte, políticas, econômicas e mesmo climáticas.

Debaixo de um sol escaldante, longe das tempestades que engolfaram a Marina da Glória no ano passado, a feira ArtRio abriu mais uma edição na semana passada. Nem mesmo o que alguns chamaram de tufão no meio do evento, que forçou a interdição de uma das alas da feira, arrefeceu os ânimos do povo "artsy" pronto para fechar negócio.

A expectativa ainda às vésperas de mais uma feira no rastro de uma segunda SP-Arte do ano, em São Paulo, e uma edição da Bienal de São Paulo que começou já aclamada pela crítica mundial, não podia ser menos eletrizante na visão de galeristas e colecionadores.

Os instantes antes da temporada de liquidações cariocas foram bastante eufóricos, talvez
decisivos, já que muitas vendas eram concretizadas por bons galeristas paulistanos em plena ponte aérea, o burburinho em alta frequência de Congonhas ao Santos Dumont —alguns marchands vieram fazer só entregas, já que quase tudo estava vendido a partir das seleções enviadas de antemão aos
clientes VIP, o infame PDF.

No galpão da feira, uma série de obras estampavam alegres esse "mood" moda praia. Uma "Cena de Praia", de Candido Portinari, mostra uma moça de biquíni tostando sob o sol, e José Pancetti fez um belo flagra marítimo em "Mulheres e Crianças na Praia", ambas na Pinakotheke Cultural.

Mas, já distante do modernismo, as praias do Rio de Janeiro atual, no fogo cruzado entre morro e asfalto, deram as caras numa série de obras vibrantes, a tônica de uma arte figurativa atualíssima que domina o circuito, de São Paulo e Rio a Los Angeles, Miami, Nova York e Basileia, na Suíça.

Lá estavam as pinturas de rolês alegres de garotas de shortinho em galerias de arte, pegando um bronze em piscinas de plástico e batendo cabelo no baile funk, todos trabalhos de Priscila Rooxo, artista representada pela galeria Francisco Fino, de Lisboa.

Também estava ali a cena solar e praiana de Osvaldo Carvalho, artista da galeria Janaina Torres, de São Paulo, que pintou um rapaz sentado, iPhone na mão, apontando para três beldades de biquíni em frente ao morro Dois Irmãos, a moldura faiscante da praia de Ipanema.

Todos os personagens, assim como os artistas que os inventaram, são negros. Os nomes novos no circuito, homens e mulheres mais jovens ou mais velhos, trilham uma rota aberta por outros de uma novíssima leva de artistas que pôs —e ainda mantém— a pintura figurativa da vida negra do país em primeiríssimo plano no cenário mundial já faz alguns anos, uma tendência que se reforça a cada temporada de feiras e bienais.

Um dos pioneiros dessa onda, Maxwell Alexandre, que recebeu convidados na galeria que mantém na Rocinha, onde cresceu, mostrou na ArtRio, na paulistana Millan, uma série de pinturas em que o fofo dinossauro mascote da Danone é espancado quadro a quadro.

As obras têm como pano de fundo embalagens de Toddynho, o achocolatado que ele conta não poder ter tomado quando criança e fator na gênese de um trauma exorcizado agora em trabalhos avaliados na casa das dezenas de milhares de dólares.

Também ali estavam as obras de Kika Carvalho, na carioca Portas Vilaseca, que pinta momentos da vida cotidiana só com personagens negros, e mais uma pintura mural de Bastardo, esta na galeria A Gentil Carioca, que mergulha o "bling" do hip-hop ostentação numa composição lisérgica, de violetas e azuis.

Os trabalhos de Igor Rodrigues, na Acervo, de Salvador, levam essa tendência à máxima potência. São retratos lustrosos de personagens negros com vidro nos olhos, cacos espelhados que fazem o público se ver na pintura. É um tanto kitsch, mas não deixa de refletir o momento de afirmação e sedimentação da presença de corpos antes excluídos agora bem no centro do circuito.

Na paulistana Leme, Tiago Sant’Ana, artista conhecido por performances e vídeos viscerais, entra na seara da pintura com retratos empoderados de rapazes negros, num registro que lembra a operação visual de embaralhamento histórico do artista americano Kehinde Wiley, que retrata figuras distantes do poder com ares de realeza e estampas extravagantes ao fundo.

Essa mesma vibração solar se traduz em chave geométrica nas abstrações de Zé Tepedino, artista-sensação do momento, que teve uma mostra individual há pouco tempo na galeria Casa Triângulo, em São Paulo, e está agora em cartaz na OM.Art, galeria do artista e estilista Oskar Metsavaht perto do Jockey, no Jardim Botânico.

Suas composições usam o tecido de cadeiras de praia, azuis, verdes e amarelas, para criar mosaicos geométricos, a grelha modernista com um ar prosaico, de dia à beira do mar, pé na areia e coisa e tal.
Esse hedonismo preso em algum lugar no espectro de humor entre o ingênuo e o ácido transborda das telas de Grauben, pintora redescoberta agora pela galeria Galatea, de São Paulo, autora de quadros pontilhistas que retratam uma natureza exuberante, de pássaros e flores em brilhantes explosões cromáticas.

É praxe toda temporada ter seu velho mestre reinventado e readequado aos padrões do mercado, que mudam como as ondas do mar, mas a bela seleção de trabalhos que parecem remixar Matisse e Seurat com uma raiz brasileira não pareceu destoar de todo o conjunto das obras levadas à ArtRio, encerrada neste domingo.

'Ogiva' de Alfredo Volpi
'Ogiva' de Alfredo Volpi - Divulgação

O mesmo rigor calculado, um pé na composição cerebral e outro na alta voltagem das cores, aparece nas telas de Alfredo Volpi, modernista levado à feira carioca pela Almeida & Dale, de São Paulo, uma prévia de uma aguardada retrospectiva do artista na Itália no ano que vem.

O preço dessa alegria é salgado, de R$ 300 mil a R$ 1,6 milhão cada obra. Mas nada assusta. Os sorrisos estão de volta à cidade maravilhosa.

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