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Como 'Jogos Mortais', que faz 20 anos, critica os EUA com sangue e tripas

Franquia criada após o 11 de Setembro esgotou alegoria com excesso de filmes, mas refletiu moral torta e liderou gênero

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Marcelo Miranda
Curitiba

Olá, leitor. Eu quero jogar um jogo. Há situações que colocam você no limite entre o que considera certo e o que compreende como necessário de ser feito. Imagine-se numa sala escura, amarrado numa cadeira, com os olhos forçadamente arregalados por pequenas agulhas que te impedem de fechá-los.

Numa tela à frente, serão exibidos, ininterruptamente, os 10 filmes da franquia "Jogos Mortais". Para você escapar desse dispositivo, é preciso esperar até o final do último filme. Se tentar sair antes, as agulhas furam seus olhos. A escolha é sua.

Estreia nesta quinta-feira nos cinemas "Jogos Mortais 10", nova retomada de uma das franquias de horror mais lucrativas de todos os tempos. Apesar de o primeiro filme ter estreado no Festival Sundance em janeiro de 2004, a série nasceu, de fato, em 2003, há exatos 20 anos.

Detalhe do cartaz de divulgação do filme 'Jogos Mortais 10', de Kevin Gruetert
Detalhe do cartaz de divulgação do filme 'Jogos Mortais 10', de Kevin Gruetert - Divulgação

Foi no ano em que os jovens australianos recém-formados James Wan e Leigh Whannel enviaram o curta-metragem "Saw" a produtores de Hollywood pedindo investimento. O filminho, disponível no YouTube, chamou a atenção da pequena produtora Evolution, que bancou US$ 1 milhão. Em 18 dias de filmagens e poucas semanas de pós-produção, "Jogos Mortais" estava pronto para se tornar um fenômeno.

Hoje muita gente faz troça do eterno retorno do assassino Jigsaw, ou Quebra-Cabeça. Interpretado por Tobin Bell em nove dos 10 filmes, ele ficou famoso pelos excessos de violência com toques de caricato. Fato é que, em 2004, a atmosfera era favorável ao surgimento de um filme como "Jogos Mortais".

A Guerra do Iraque, consequência do 11 de Setembro de 2001, estava em andamento. Informações sobre torturas de prisioneiros perpetradas por soldados norte-americanos apareciam constantemente no noticiário. A prisão na baía de Guantánamo foi o marco desse período.

"Jogos Mortais" refletia, sob o guarda-chuva de uma historinha de terror cheia de segredos e guinadas de trama, o sadismo e a moralidade torta em voga num processo geopolítico complexo.

A lógica do Jigsaw —o engenheiro renomado John Kramer, que tem um câncer terminal— é a de que os indivíduos devem valorizar a oportunidade de estarem vivos e não fazerem mal contra seus semelhantes. Kramer acredita fazer justiça ao trancafiar e desafiar pessoas que ele acha merecedoras de castigos e punições para que elas repensem suas escolhas ou morram barbaramente ao recusarem a proposta.

A imagem recorrente das armadilhas do Jigsaw é alguém preso numa cadeira ou atado a correntes ou cordas sem poder se movimentar, sendo informado de que seu destino depende de si mesmo nos segundos imediatos por vir. Kramer é um antagonista tão professoral quanto vingativo, que se mostra pouco nobre com o avançar da franquia.

Suas ações popularizaram o termo "torture porn", ou pornografia da tortura, junto com "O Albergue", filme de Eli Roth lançado em 2006.

Entre 2004 e 2010, "Jogos Mortais" teve um filme por ano. A regularidade tanto fidelizou os fãs quanto banalizou a experiência de continuidade. A alegoria das torturas de guerra se esgotou, e a franquia passou a explorar outras questões.

Vieram tramas com especuladores do mercado imobiliário no quinto filme, executivos de planos de saúde no sexto e coachs motivacionais no sétimo. Sempre Jigsaw e seus ocasionais discípulos adotam alguma classe social ou empresarial a ser atacada e propõem armadilhas cada vez mais elaboradas e exageradas.

Os três filmes iniciais são produzidos e roteirizados por Wan e Whannel, tendo Wan como diretor apenas do primeiro. Do quarto ao sétimo, Patrick Melton e Marcus Dunstan assumem os roteiros e amplificam os cenários e a mitologia em torno de John Kramer e seus alvos.

Após um hiato de sete anos e US$ 1 bilhão de bilheteria acumulada, a franquia é retomada em "Jigsaw", de 2017, escrito por Josh Stolberg e Peter Goldfinger, com a pretensão de ser uma sequência de legado dos anteriores. A ideia foi levada mais fundo no seguinte, "Espiral: O Legado de ‘Jogos Mortais’", um fracasso de 2021 que não conseguiu captar o fascínio exercido pelos oito filmes anteriores.

A nostalgia que hoje movimenta a máquina hollywoodiana aparece nos recentes "Jogos Mortais" em autorreferências que não temem se levar a sério. Algumas das mais famosas franquias de horror —como "A Hora do Pesadelo", "O Massacre da Serra Elétrica" e "Sexta-feira 13"— em algum momento chegaram a se parodiar como caminho de permanência, nem sempre com resultados muito animadores.

"Jogos Mortais" até zomba de si mesma, mas mantém a consciência de seu impacto cultural e respeito mínimo pelas propostas que oferece ao espectador. O deboche em torno da franquia tende a estar muito mais fora do que dentro dos filmes.

De um jeito insuspeito, cada filme é um comentário sobre os Estados Unidos em produções levadas pouco a sério por parte do público e vistas muitas vezes só como "torture porn", caminho relativamente fácil de desvalorização.

Nas tramas rocambolescas de gente sofrendo e estrebuchando, há espaço para abordagens ácidas da incompetência policial, da organização de seitas a partir de algum tipo de salvação e do funcionamento de sistemas sociais cujo propósito em grande parte é esmagar os indivíduos mais desfavorecidos economicamente. Há até algumas referências homoeróticas e fetichistas que ajudaram a franquia a ser admirada por fatia significativa da comunidade LGBTQIA+.

Se você embarca nas propostas exuberantes, é fácil voltar a "Jogos Mortais". Sem filmes excelentes, o conjunto têm momentos marcantes, bons personagens e reviravoltas inacreditáveis, reveladas em montagens alucinadas que deixam a sensação de se ver uma série que não presta, mas é viciante.

Ao seu modo, a franquia é como uma matinê seriada, só que em filmes repletos de sangue, gritaria, membros decepados e muita gente que não conversa nem se entende. Faça sua escolha.

Jogos Mortais 10

  • Quando Estreia nesta quinta (28) nos cinemas
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Tobin Bell, Shawnee Smith e Steven Brand
  • Produção Estados Unidos, 2023
  • Direção Kevin Greutert
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