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Paulo Santos Lima

'Elis e Tom' é caso raro num país que não sabe preservar a sua cultura

Documentário sobre parceria dos músicos faz lembrar como o Brasil não leva a sério o patrimônio e a memória de seu povo

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Paulo Santos Lima

Crítico, professor de cinema e curador das mostras "Easy Riders - O Cinema da Nova Hollywood" e "O Cinema Francês Pós-Nouvelle Vague"

O que mais impressiona em "Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você", além dos bastidores do lendário "Elis & Tom", claro, é o material gravado na ocasião, em Los Angeles, no ano de 1974.

Cena do documentário 'Elis e Tom, Só Tinha de Ser com Você', de Roberto de Oliveira
Cena do documentário 'Elis e Tom, Só Tinha de Ser com Você', de Roberto de Oliveira - Divulgação

Codiretor do filme ao lado de Tom Job Azulay, Roberto de Oliveira era na época o empresário de Elis Regina e pretendia recolocá-la na cena. Conseguiu, meio por sorte, o acesso a um dos estúdios da MGM.

Contou ainda com a fotografia e câmera de Fernando Duarte, que registrou tanto as tensões criativas entre Elis e Tom Jobim, como os momentos de "amor criativo" —os dois passeando pela cidade californiana ou trocando sorrisos a cada som entrosado.

Tom, que seria em princípio um convidado, conseguiu, não sem fortes tensões, se enfiar por entre o projeto inicial e, assim, tramar seu fino gosto pelas poucas notas sobre a pretendida profusão mais densa da voz de Elis Regina, do piano elétrico de César Camargo Mariano e o som mais intenso dos outros músicos. Jobim, Elis e os demais foram se entendendo e fizeram este que é hoje um dos clássicos da música brasileira.

"Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você" é um típico "documentário musical mainstream", desses que habitam as mostras de filmes sobre música e costumam aparecer também nos streamings. Sidney Molina, em sua análise sobre o filme, cita a semelhança com "Get Back", de Peter Jackson, que versa sobre os bastidores do álbum "Let It Be", dos Beatles.

No caso do filme de Oliveira e Azulay, o formato para o mercado internacional tem sua dignidade, e a força está na incomum fortuna de imagens "de nós mesmos" somada a outros materiais de arquivo, como Sinatra cantando com Jobim, Elis se apresentando em palcos internacionais, além de entrevistas e depoimentos de sumidades como Wayne Shorter e Ron Carter.

O extraordinário desse documentário "Elis & Tom" faz lembrar desse tal Brasil, país sem memória. Onde toda a sorte de acervos de imagem, som, literatura, objetos de arte etc. vez e outra encontra o azar.

O dos incêndios e, mais especificamente, o de uma política pública precarizada, quando não mal-intencionada, como a do governo Jair Bolsonaro, que desnorteou em seus quatro anos a gestão da Cinemateca Brasileira e a brindou com um quinto incêndio em sua história —acidental, mas anda assim uma fatalidade simbólica.

O Centro Técnico Audiovisual, o MIS, a citada Cinemateca Brasileira, a Cinemateca do MAM e as cinematecas da Bahia, do Capitólio e a da Fundação Joaquim Nabuco são alguns dos combativos espaços de amparo ao material audiovisual.

Acervos de outras naturezas, como o fonográfico, o de documentação histórica, os impressos, as bibliotecas e os museus —entre estes último, a destruição do Museu Nacional em 2018 deixou claro que instituições de preservação, guarda e difusão, ou seja, de memória de um país são, todas elas, desprezadas por uma cultura que não leva a sério a ideia de um patrimônio material que espelha quem somos na história de nós mesmos.

Nem a televisão, que desde os anos 1970 é também uma espécie de patrimônio que traz uma certa sociologia do país, conseguiu se preservar. Um incêndio na Globo destruiu parte do acervo, entre novelas e, inclusive, algo que está sendo tratado neste texto —parte dos clipes produzidos pela emissora nos anos 1970 e 1980.

A Record teve os mesmos azares. Assim como a Manchete, por opção própria, que se desfez de seu acervo.

O estado precário de muitas filmografias nacionais é doloroso, mas a destruição habita a história do cinema mundial. Obras do cinema silencioso japonês, assim como a era muda do cinema italiano, além de filmes de Georges Méliès e de F.W. Murnau estão perdidos.

Os filmes americanos, ingleses e franceses, assim como clássicos do cinema mundial, ganharam restauro e conservação. O que não significa que os grandes estúdios de Hollywood não tenham largado às traças boa parte do que produziu.

Voltando a "Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você", é expoente a semelhança com o que é visto nos documentários americanos, um país que notoriamente percebeu que som e imagem possibilitam uma narrativa, uma história, uma mitologia na nação.

País jovem e ex-colonizado, os EUA souberam, ainda no século 19, construir uma tradição, um antecedente lendário que, mesmo recente em comparação aos das nações europeias, afrontou seus colonizadores de igual para igual.

Nascem os mitos nacionais de Lincoln a Guerra da Secessão. E o cinema, com seus filmes energéticos que, grosso modo, apostavam mais forte ali na primeira metade do século 20, numa espécie de aventura e drama sobre a história do povo americano. Uma política de estado.

O Brasil, com seus ciclos interrompidos, filmes brilhantes abandonados à degradação e, o pior de tudo, uma cultura que de certa forma é cética ao que de fato é importante, não possui um acervo onipresente e essencial.

É do fragmento e imagens quase perdidas, inclusive, que surgiram filmes como "Torquato Neto: Todas as Horas do Fim", de Eduardo Ades e Marcus Fernando, e "Cartola: Música para os Olhos", de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira.

Melhor ainda, algumas magníficas restaurações que recuperaram filmes como "Nelson Cavaquinho" e "Partido Alto", de Leon Hirszman. Ou a maravilha de "Na Estrada da Vida", filme de ficção de Nelson Pereira dos Santos que laureia Milionário e Zé Rico, grande cinema popular ali em 1980.

Há uma ironia em "Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você". O material em 16 mm, cujo formato é 1:37, mais quadrado, aparece na plenitude de um formato mais largo do cinema, o scope. As imagens têm, assim, o material inferior e o superior cortados.

É um leve sacrifício, sem danos reais na experiência, para levar ao conhecimento internacional essa lendária parceria entre dois grandes artistas. A mitologia de uma das riquezas do Brasil, sua música, também demanda algumas custas.

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